quinta-feira, 9 de junho de 2016

Pessoa jurídica notoriamente carente não precisa provar miséria


Ao contrário do que se exige das pessoas naturais, não basta à pessoa jurídica afirmar, simplesmente, que não dispõe de recursos para obter o benefício da assistência judiciária gratuita. Antes, deve fazer prova da carência de recursos. No entanto, quando sua situação de penúria financeira é pública e notória, essa prova é dispensada.

Com esse entendimento, a 8ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho do Rio Grande do Sul reformou sentença, no aspecto, para deferir a concessão de assistência judiciária gratuita ao Sanatório Belém, um dos mais tradicionais hospitais de Porto Alegre, hoje imerso numa grande crise financeira. O juízo de origem indeferiu o pedido da instituição — parte reclamada — por falta de prova da possibilidade de arcar com as despesas do processo.

Em suas razões recursais, o Sanatório Belém argumentou que atende, preponderantemente, o Sistema Único de Saúde, que notoriamente não cobre a totalidade dos custos gastos com cada paciente. Dessa forma, a imposição do recolhimento do depósito recursal e pagamento de custas processuais minguariam ainda mais os parcos recursos que lhe são repassados.

O relator do recurso na corte, desembargador Juraci Galvão Júnior, disse que o Superior Tribunal de Justiça e o Superior Tribunal Federal convergem no entendimento de que as pessoas jurídicas, para terem direito ao benefício, precisam provar sua precariedade financeira. Entretanto, no caso concreto, essa prova é dispensável, diante de ser pública e notória a situação de ‘‘deficiência econômica’’ da entidade.

‘‘Nesse contexto, dou parcial provimento ao recurso, no item, para deferir ao reclamado o benefício da gratuidade da justiça, isentando-o do recolhimento do depósito recursal, e determinando a suspensão da condenação ao pagamento de custas processuais e honorários assistenciais, nos exatos termos do parágrafo 3º do artigo 98 do NCPC’’, escreveu no acórdão.

Clique aqui para ler o acórdão.

sexta-feira, 3 de junho de 2016

Exemplo de Cartel


Parte 1: Indicação para leitura complementar - A evolução que criou a pessoa jurídica merece ser conhecida.


Por João Grandino Rodas

Conhecimento vulgar todos possuem sobre pessoa jurídica. Entretanto, os cultores do Direito têm obrigação de possuir conhecimento científico, aquele que vai até o seu surgimento, chegando até as causas mais remotas dessa instituição.

As formas associativas existentes no Direito Romano Antigo não se revestiam de personalidade jurídica. Os bens dos sodalicia e collegia, associações que se dedicavam a cultuar os deuses, pertenciam ao Estado, sendo meramente utilizados por tais coletividades.

Na época imperial, inicia-se a corporificação do conceito de pessoa jurídica. As cidades colocadas sob a esfera de influência do Estado Romano — municipia —, embora tendo perdido a existência política, mantinham a capacidade privada. Dessa forma, começam a aparecer entes autônomos patrimonialmente — arcam communem habere — e que não se confundiam com os seus membros. Tal conceito, denominado corporação, viria a ser descrito por Ulpiano: "Si quid universitati debetur, singulis non debetur, nec quod debet universitas singuli debent (D. 3, 4, 7 § 1°)".

Mimeticamente outros entes coletivos, como os collegia — e até mesmo o fisco —, passam a se organizar corporativamente. Ressalte-se que a capacidade jurídica derivava da existência de patrimônio próprio (arcam habere) e de representação judicial (actorem vel syndicum), acabando arcam habere por significar corpus habere. A capacidade jurídica era intrínseca, não sendo o reconhecimento estatal concessivo de personalidade.

É importante estremar a corporação ou universitas de societas no Direito Romano. Na corporação, a unidade é que é titular de direitos e obrigações, que conclui contratos e que se representa em juízo. Ela continua existindo apesar da troca de sócios. Já a societas é uma relação jurídica contratual entre sócios, inexistente com relação a terceiros e que, normalmente, se extingue com a morte ou retirada de um sócio. Os sócios persistem como sujeitos de direito, condividem o patrimônio comum, sendo pessoalmente responsáveis com os respectivos patrimônios.

Por meio da Lex Julia de Colegiis, foi Augusto o primeiro a dar cunho de concessão de um privilégio ao reconhecimento da subjetividade de um ente associativo, ao subordinar a existência de uma corporação a uma lex specialis. Senatusconsultos e constituições imperiais viriam aperfeiçoar tal entendimento.

Ausente autoridade estatal na Alta Idade Média, desenvolveram-se as mais variadas formas associativas. Pioneiramente, os canonistas passaram a denominar a corporação de persona. De início, utilizam-se as expressões persona collegii e persona universitatis, passando após a persona repraesentata ou persona ficta, a fim de espelhar a teoria que haviam concebido acerca da essência mesma da corporação.

No século XIII, o decretalista Sinibaldo Feschi, futuro Papa Inocêncio IV, daria grande alento à teoria da persona ficta sive intellectualis. Sempre lembradas são suas expressões universitas fingatur esse uma persona; bem como corpus mysticum, referindo-se à igreja. Tal conceito abstrato acabou por ser aplicado a outras organizações corporativas e a influenciar os pós-glosadores, que se utilizavam de expressões como ficta et repraesentata persona e corpus mysticum vel fictum.

Elaborando substrato oferecido pelo Direito germânico primitivo — em que bens eram tidos como pertencentes a um santo, que se tornava credor e devedor — o Direito Canônico, à luz da concepção acima, criou a ideia de fundação, que se alastrou, abarcando não só o terreno religioso propriamente dito, como o de beneficência e de educação.

À medida que o poder se centraliza, a corporificação espontânea da personalidade jurídica cede passo à concessão atributiva, pela qual o reconhecimento soberano é condição de personalidade. A aprovação faz surgir um collegium licitum, dotado dos direitos corporativos, inclusive capacidade patrimonial.

Na Inglaterra, o rei, na pessoa de quem se operou a centralização do poder, detinha a capacidade de criar uma corporation, isto é, uma pessoa ficta, pela expedição de uma charter of incorporation. Por esse método, criaram-se primeiramente entes públicos e eclesiásticos e subsequentemente corporações profissionais.

No continente, a necessidade de participação do poder central para a criação da universitas, que no dizer dos glosadores e canonistas não se corporificavam sine auctoritate episcopi vel principis, sofria exceções no Direito comum. Os comentadores se encarregavam de admitir approbatio de jure, confirmatio tacita e até mesmo usucapião de direitos corporativos. Nessa época, as entidades associativas possuíam autonomia patrimonial e subjetividade, mas os sócios continuavam responsáveis pessoalmente. A limitação da responsabilidade somente adviria mais tarde, por ocasião da criação de grandes companhias, de alto risco, sob a égide do poder central.

O restabelecimento de tal poder andou pari passu com a generalização da concessão como privilégio. A partir do século XVII, em praticamente todos os países europeus, inicia-se a ofensiva do sistema de concessão, por meio do qual o poder régio procurou, quer limitar o poderio econômico das corporações religiosas, quer conter a falência fraudulenta de companhias estrangeiras.

As sociedades de interesse privado foram as últimas a se revestir de personalidade jurídica. No que tange às sociedades comerciais, elas se forjaram sob o influxo dos costumes sociais e das exigências do comércio, tendo sido inicialmente regidas por Direito Consuetudinário, mais tarde reconhecido pela jurisprudência. A legislação começaria a se preocupar com a matéria somente no século XVII, com as ordenações francesas.

Não houve do século XVI ao XVIII progresso palpável na teorização da pessoa jurídica. Sua conceituação unitária deve-se à dogmática do século passado e do atual, embora suas origens possam remontar, como se viu, à elaboração começada por Sinibaldo Fieschi, resgatada pela pandetística e finalmente recepcionada pelos ordenamentos modernos. Embora tais ordenamentos tenham sido unânimes na aceitação do conceito, a terminologia varia: a legislação e doutrina francesas acolhem as expressões pessoa civil ou pessoa moral. Os italianos utilizam-se de corpo ou ente moral, ente coletivo ou jurídico e pessoa jurídica. Na Alemanha há preferência por pessoa jurídica, o mesmo acontecendo em nosso sistema jurídico.

Tanto o Direito Romano como o Direito intermédio não oferecem princípios diretores confiáveis, talvez por inadaptação ao tipo e ao volume do comércio moderno. Na falta de orientação segura, coube aos próprios comerciantes, por acerto e erro, generalizar costumes e criar um jus mercatorum. Isso explica a liberdade na busca de construções e a ousadia na fixação de certas cláusulas sociais.

Inobstante os diferentes tipos sociais tenham-se corporificado isoladamente, não se pode negar terem mutuamente exercido certas influências.

Da empresa familiar e da solidariedade e indivisão que lhe são características, brotaria uma espécie de sociedade: sociedade geral ou em nome coletivo. A proibição canônica de receber juros de empréstimos e o interesse em participar nos riscos de um negócio faria surgir a sociedade em comandita. Já a sociedade por ações foi o arcabouço associativo elaborado para servir os fins dos banqueiros e colonizadores.

Com relação a terem ou não tais tipos de sociedade atingido a personalidade jurídica, lembre-se que o forte papel dos sócios — na sociedade geral e na em comandita — acabou por relegar a segundo plano a personificação da sociedade em si.

Crê-se, entretanto, que a sociedade por ações, tendo sido criada nos moldes de corporação, sob os auspícios de autorização real, detivesse personalidade jurídica, por força da aplicação ao comércio, de um princípio de Direito Público, que se começou a fazer no século XVII.

Deve-se à doutrina, a paulatina assimilação das demais sociedades à sociedade por ações, no que respeita à assunção de personalidade jurídica. No fim do século XVIII, a noção de empresa, construída em grande parte sob o influxo da sociedade por ações, e à qual se encontra ínsita a ideia de pessoa jurídica, se superporia ao entendimento de sociedade comercial como mera associação de pessoas com base contratual.

Por largo tempo, a doutrina não se preocupou com a personalidade jurídica da sociedade. Obras importantes sobre a matéria, bem como dicionários sequer se referiam à questão. A partir de fins do século XVIII, contudo, a pessoa jurídica tornou-se importante tema de indagação jurídica. De então até inícios do XX, foram elaboradas as teorias consideradas clássicas acerca da sociedade[1]. Sociedade e empresa são temas que continuam centrais na pesquisa e no estudo do direito, daí a importância e necessidade de os cultores do Direito não perderem de vista o seu aparecimento e sua evolução através dos séculos, conhecimento esse que pode, inclusive, auxiliar na interpretação das leis atuais sobre a matéria.

[1] Rodas, João Grandino, Sociedade Comercial e Estado, São Paulo, Saraiva, 1995.

Parte 2 - Indicação para leitura complementar: As teorias ajudam a interpretar as leis sobre pessoas jurídicas

Por João Grandino Rodas

João Grandino Rodas [Spacca]Uma vez surgida a personalidade jurídica da sociedade, a partir do século XVIII, a doutrina passou a tecer teorias a respeito. Tais teorizações, longe de serem elucubrações vazias, servem como fundamento para as elaborações das leis sobre sociedades, bem como fornecem subsídios para interpretação da legislação societária existente.

A mais antiga teoria baseava-se na ficção, data do século XIII e tinha suas raízes no direito canônico. Desenvolvida mormente na Alemanha no século XIX teve largo curso, principalmente na própria Alemanha, na França, na Bélgica, na Itália e no Reino Unido[1].

Embora tenha tido outros arautos, tem-se como assente que sua formulação clássica coube a Savigny, que a delineou, como segue. Somente o ser humano é sujeito de direito, devendo o conceito de pessoa coincidir com o de ser humano. Cabe contudo ao direito positivo influir sobre tal princípio, quer negando capacidade a certos seres humanos, quer estendendo-a a entes que não o são. Nesse caso, seres artificiais criados pela mera ficção — fictio juris — terão capacidade jurídica. É o caso da pessoa jurídica. Como a capacidade artificial das pessoas jurídicas só se pode referir a relações de direito privado, pode-se definir pessoa jurídica como sendo um sujeito criado artificialmente, capaz de possuir patrimônio. Dentre as pessoas jurídicas, algumas têm existência natural ou necessária — o Estado —, enquanto outras são artificiais e arbitrárias — caso das corporações e fundações.

A pessoa jurídica, pelo fato de ser simples ficção, de um lado, não é capaz de querer e de agir; de outro, é inimputável. Sua vontade, assim como a dos loucos e impúberes, manifesta-se por meio da representação. Atos ilícitos somente podem ser cometidos por indivíduos que delas participam. Sublinhe-se, ademais, três pontos. Primeiramente, a personalidade jurídica é um atributo concedido pela lei a certo grupo, não sendo decorrência necessária do direito de associação. Em segundo lugar, que uma pessoa jurídica é distinta das de seus membros componentes, podendo teoricamente sobreviver ao desaparecimento do grupo que a tenha constituído. E, finalmente, que a sua supressão como pessoa jurídica não está na alçada da vontade de seus membros.

Dentre as objeções levantadas contra a teoria da ficção, estão as seguintes.

Não é factível ao Legislativo criar fictamente uma pessoa, quando os requisitos básicos estão ausentes. Um relacionamento social tem existência de per si, embora seja possível a esse Poder estabelecer proibições, quando considerar algo ilícito.

A teoria não traz realmente uma solução, pois uma pessoa ficta, por não possuir vontade própria, é uma não-pessoa. Atribuir a uma pessoa jurídica bens não pertencentes a indivíduos é um eufemismo, para dizer que não pertencem a ninguém. Por não terem um titular, em última análise, poderá o Estado facilmente se manumitir em tais bens.

Não se compreende como é possível ao ente coletivo ficto ser independente e ao mesmo tempo estranho às pessoas físicas que o compõe, chegando ao ponto de a existência ideal poder sobreviver a todos os seus membros. O normal seria o reconhecimento de mútua interdependência.

A teoria da ficção preocupou-se com a noção de personalidade moral no direito privado, pois, no âmbito do direito público, considerava aceitável a atribuição da soberania à pessoa física do soberano e não ao Estado. Peça lógica, entretanto, a noção de personalidade jurídica deve ser comum tanto ao direito privado como ao público. O próprio fato de ter a teoria em questão afirmado ser o Estado uma pessoa jurídica necessária, coloca em xeque a própria teoria, ao admitir a possibilidade do sacimento de uma pessoa jurídica, por outro modo que não pela vontade da lei.

Inobstante ter sido muito criticada, é inegável a notável disseminação e a força da teoria em tela até inícios do século XX. Seus próprios detratores a reconhecem, chegando até mesmo a apontar como razões para tanto, além de estar imbricada na tradição, a sua ínsita simplicidade e seu rigor lógico. Na verdade, toda a teoria é deduzida de uma premissa — só o homem é sujeito de direito — de que deriva o corolário, a pessoa jurídica é um entre fictício.

Acreditar no axioma de que unicamente o homem é sujeito de direitos, mas não aceitar a ficção de personalidade, leva à completa desnecessidade da existência de personalidade jurídica e subsequentemente à sua negação. As teorias que surgiram nessa linha e que procuraram uma resposta para a situação do patrimônio da pessoa jurídica, bem como aos direitos por ela exercidos, podem ser didaticamente agrupadas em duas: teoria dos direitos sem sujeito ou teoria do patrimônio de afetação; e teoria individualista.

Desenvolvendo a possibilidade da existência de direitos sem sujeito, afirmada por Windscheid em 1853, e utilizando também formulações do direito romano, Brinz acabou por deduzir a teoria do patrimônio-fim (Zweckvermögen).

Entre os romanos só havia uma espécie de pessoa, a humana. A criação, modernamente, de uma segunda categoria de personalidade - a jurídica – representa um regresso fantasioso, além de desnecessário. Isso porque os bens podem pertencer ad aliquem - a alguém -, mas também ad aliquid - a uma finalidade – a qual não necessita ser personificada para merecer proteção jurídica. Dessa maneira, os bens da pessoa jurídica seriam patrimônio sem fim. Titular dos direitos e deveres seria o patrimônio, e seus representantes agiriam no intuito da finalidade, e não per se.

Bekker trouxe à teoria em tela novos desenvolvimentos. Face ao direito duas são as situações possíveis: o gozo (genus) e a disposição (verfügung). Nem sempre o gozo – potencialidade de usufruir suas vantagens materiais – vem junto com a disposição – direito de agir como proprietário, administrando-os etc. Enquanto o gozo pode também caber a um incapaz, animal ou coisa inanimada, a disposição é privativa de alguém capaz de volição. Além disso, ele bipartiu os patrimônios-fim em independentes e dependentes. Os primeiros repetem a conceituação de Brinz, conjunto de bens afetados a uma finalidade e sem sujeito. Os últimos são bens, embora compondo um patrimônio maior de uma pessoa, servem como autonomia a um objetivo especial.

Centrada na pessoa dos associados e com raízes na doutrina do direito subjetivo de Ihering, Van der Heuvel propôs uma teoria que foi posteriormente desenvolvida por Vareilles-Sommières.

Para Van der Heuvel não é necessário apelar-se para a ficção, de vez que as regras de associação podem ser explicadas por meio dos princípios gerais. Três seriam as diferenças entre sociedades com personalidade e as dela destituídas: (i) mesmo possuindo a sociedade bens imóveis, sempre se considera mobiliário o direito dos sócios; (ii) o ativo social, patrimônio da sociedade, garante apenas os credores da sociedade, não os credores pessoais dos sócios; e (iii) o gerente representa a sociedade em juízo.

A praticidade está na origem da primeira diferença: simplificação do procedimento de transmissão de ações ou partes da sociedade. A segunda encontra sua explicação na separação de patrimônio e na liberdade contratual. Os sócios, ao formarem a sociedade, afetam certos bens à finalidade social e somente esses bens responderão pelas dívidas dessa sociedade. Isso é factível, desde que se acautelem terceiros. A última se dá, pois o gerente representa todos os sócios.

Em conclusão, as pessoas jurídicas seriam associações às quais a lei concedeu alguns privilégios, além de certas derrogações dos princípios comuns, em suma, um conjunto de privilégios.

Vareilles-Sommières parte do pressuposto de que todas as pessoas jurídicas são associações e considera como sendo, na verdade, dos associados os direitos tidos pela doutrina como pertencentes à pessoa jurídica. Os associados, coproprietários do patrimônio social, no exercício de seus direitos, acham-se sob a égide de um regime personificante — régime personnifiant — cujas feições são : a) um associado, somente com o consentimento de todos, poderá alienar a sua parte da massa comum; b) não pode um associado receber separadamente o seu quinhão de crédito social; c) não se pode exigir isoladamente de um sócio a sua parte da dívida social.

Embora se possa depreender dessa trilogia que exista uma pessoa, pelo fato de os associados possuírem conjuntamente o patrimônio social, na realidade inexiste outra pessoa a não ser a dos indivíduos associados. Assim, a gênese da pessoa jurídica não se deve ao legislador, mas sim ao regime a que se submeteram os associados.

As características do regime personificante, por seu turno, estão em consonância com os princípios gerais de direito obrigacional. Nessa linha, a pessoa jurídica seria um conjunto de cláusulas, devidamente aceitas pelos associados.

Embora creditando à teoria dos direitos sem sujeito, o fato de ter realçado o elemento teleológico no conceito de personalidade jurídica, são as seguintes as objeções mais frequentes contra tal teoria.

A possibilidade da existência da pessoa jurídica destituída de patrimônio comprova que os conceitos de patrimônio-fim e de pessoa jurídica não se superpõem. Qualquer patrimônio, inclusive o pertencente a um indivíduo, serve a uma finalidade. A pessoa jurídica é muito mais que uma simples coleção de bens. A existência de sujeito é imprescindível para que haja direito. Embora se possa imaginar a junção dos direitos patrimoniais em um todo, foge à compreensão como no patrimônio possam residir direitos de outras naturezas, como, exemplificativamente, os corporativos.

Já a teoria individualista ocasionou, mormente, as críticas a seguir:

Não aquilatou a importância do reconhecimento legal no surgimento da associação, acabando por, inter alia, deixar de reconhecer as diferenças entre associações não reconhecidas e pessoas jurídicas, na verdade existentes. Não é possível que a personalidade jurídica se cinja à exterioridade da associação, pois os próprios associados encontram-se perante um ente, o qual inclusive pode pelos mesmos ser acionado.

Ambas as teorias patrimonialistas foram acoimadas de serem apropriadas apenas ao direito privado, não tendo dado explicações à existência das pessoas jurídicas de direito público[2].

Ainda há uma terceira vertente teórica sobre as pessoas jurídicas, a que afirma sua personalidade real. Esta merece ser tratada, em outro momento, especificamente. Do exame das três visões teóricas sobre pessoas jurídicas e da meditação à respeito, exsurge compreensão holística da natureza jurídica dessas pessoas, fundamentais no mundo contemporâneo.

1 Rodas, João Grandino, A evolução que criou a pessoa jurídica merece ser conhecida, Revista eletrônica ConJur, 21 de abril de 2016.

2 Rodas, João Grandino, Sociedade Comercial e Estado, São Paulo, Editora Saraiva, 1995, p. 18/23

Combate à corrupção aumenta busca por aulas de Direito Público


Os efeitos das operações de combate à corrupção vão além das prisões, do aumento no uso das delações premiadas e das discussões sobre o direito de defesa. As investigações que envolvem diversos atores do Estado também movimentam o mercado educacional, que começa a dar mais atenção ao Direito Público.

Segundo o professor da FGV-SP e doutor em Direito Comercial, Mario Engler Pinto, nos últimos tempos tem se constatado o aumento do número estudantes vindos do setor púbico e de advogados que atuam no setor privado, mas lidam com questões de Direito Púbico. “Aproximadamente 20% dos alunos de [Mestrado em Direito dos] negócios tinham algum interesse em temas de Direito Público”, diz. 

Engler cita que antes da “lava jato”, o interesse pelo tema já era motivado pela entrada em vigor da lei anticorrupção. Devido a esse crescimento, a FGV-SP criou o Programa de Mestrado Profissional em Direito Público.

O curso, que será coordenado por Mario Engler e começará em 2017, começou a receber inscrições nesta quarta-feira (1º/6). Para o professor, a criação dessa linha facilitará a interlocução entre profissionais dos setores público e privado, que interagem durante contratações com o poder púbico, principalmente nas áreas de infraestrutura e regulação.

O coordenador afirma que essa área continuará privilegiando uma abordagem de direito público não voltada a temas puramente acadêmicos, mas com aplicabilidade na área de negócios. “Por isso, haverá um importante diálogo importante com as áreas de Direito Tributário e dos negócios”.

quarta-feira, 25 de maio de 2016

Imóvel de pessoa jurídica oferecido em garantia de empréstimo pode ser penhorado


Imóvel de pessoa jurídica oferecido como garantia para contrair empréstimo em banco, desde que não seja de pequeno empreendimento familiar, cujos sócios sejam da família e a sede se confunda com a moradia, pode ser penhorado em caso de falta de pagamento da dívida.

A decisão unânime foi da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) ao analisar um caso acontecido no Distrito Federal. Um casal de aposentados contraiu um empréstimo em nome de uma empresa de artigos de decoração, oferecendo como garantia um imóvel de propriedade de uma segunda empresa, do setor de transporte.

Com o vencimento do empréstimo, o banco ajuizou ação para penhorar o imóvel dado em garantia. A defesa do casal alegou que a penhora é indevida, porque o bem é de família e local de moradia há 26 anos.

Propriedade

O juiz de primeiro grau decidiu pela penhora por se tratar de bem de propriedade de pessoa jurídica não beneficiária da Lei 8.009/90, que regula a impenhorabilidade de bens de família.  A decisão foi mantida pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT).

Inconformado, o casal recorreu ao STJ. Na defesa, alegou que a impenhorabilidade do imóvel, ainda que de pessoa jurídica, resultaria no reconhecimento constitucional à moradia. Argumentou ainda que o imóvel penhorado vale R$ 5 milhões, enquanto a dívida não ultrapassaria os R$ 200 mil.

No STJ, o caso foi relatado pelo ministro Moura Ribeiro, da Terceira Tuma, especializada em direito privado. No voto, Ribeiro salientou que o objetivo da lei ao instituir a impenhorabilidade tem por objetivo proteger a família.

Bem de família

“Assim, quando um imóvel é qualificado como bem de família, o Estado reconhece que ele, em regra, na eventual inexistência de outros bens, não será apto para suportar constrição por dívidas”, considerou.

No caso em análise, no entanto, o imóvel, ainda que utilizado como moradia familiar, de propriedade de uma empresa, foi oferecido como garantia pelo casal de idosos para tomar um empréstimo, que não foi quitado, salientou o ministro.

“Desse modo, a conclusão possível é que a dívida foi contraída em proveito do núcleo familiar e não para assegurar empréstimo obtido por terceiro, razão pela qual não há que se falar em impenhorabilidade do bem, cabendo registrar a ofensa ao princípio da boa-fé objetiva que deve ser observado na realização de negócio jurídico”, afirmou Ribeiro.

terça-feira, 24 de maio de 2016

O novo CPC aplica-se supletivamente à Lei dos Juizados Especiais



Por 

Recentemente surgiu a polêmica sobre se o novo Código de Processo Civil (CPC) tem aplicabilidade supletiva à Lei 9.099/1995 (Lei dos Juizados Especiais) nos processos cíveis.

A ministra Nancy Andrighi, com toda a autoridade do cargo que ocupa, se não encabeça, aderiu à vertente dos que preconizam a inaplicabilidade do novo CPC aos processos perante o Juizado Especial Cível.

Segundo noticiado pela ConJur, a ministra entende que “as regras do Código de Processo Civil, tanto do anterior como do que entrou em vigor no último dia 18 de março, não se coadunam com o sistema dos juizados especiais”. Ainda conforme seu entendimento, “isso tem um motivo: dar aos juízes liberdade para, com base nos princípios da informalidade e simplicidade que regem essas instâncias, adotarem o procedimento mais adequado à resolução dos conflitos”.

Preocupante deparar com entendimento dessa natureza, ainda mais exarado por uma alta autoridade judiciária.

Isto porque a primeira coisa que salta aos olhos é o viés de defender uma liberdade aos juízes do Juizado Especial Cível que nenhum outro possui, qualquer que seja a instância: a liberdade e fazer o que bem quiser no processo sob sua superintendência.

Ora, tal concepção interpretativa não tem a menor possibilidade de medrar em nosso sistema jurídico porque é a Constituição Federal que estabelece que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.

O que exatamente quer dizer esse preceito constitucional? Será que alguém, inclusive uma autoridade constituída, consultando sua própria vontade discricionária, mundivisão ou entendimento sobre o que acha certo ou errado pode obrigar outra pessoa a fazer ou deixar de fazer alguma coisa?

Penso que não. Ou há lei que obrigue a pessoa a fazer ou deixar de fazer alguma coisa, com base na qual o juiz ou qualquer outra autoridade constituída deve fundamentar a decisão a constranger alguém a fazer ou deixar de fazer algo, ou não se pode obrigar ninguém a fazer aquilo que se deseja que faça. Essa é a única interpretação possível, lógica, racional que não subestima a inteligência dos destinatários do preceito constitucional, concebido como uma garantia constitucional que deve ser evocada principalmente em face das autoridades constituídas como defesa do indivíduo em contraposição a alguma ordem para que faça ou deixe de fazer alguma coisa. Aliás, a definição de abuso de autoridade e de poder finca sua definição nessa garantia constitucional. Será sempre abusiva a ordem promanada de uma autoridade constituída para que alguém faça ou deixe de fazer alguma coisa sem que haja lei obrigando-a a tanto.

Portanto, a ideia de que os juízes do Juizado Especial Cível possam ter uma liberdade quase que absoluta para conduzir o processo perante eles da forma como quiserem, sem qualquer parâmetro legal em que possam abeberar as partes (o jurisdicionado) a fim de conhecerem previamente as regras do jogo, as condutas que devem observar, definitivamente não encontra guarida no nosso ordenamento jurídico. O processo seria kafkiano; as regras poderiam não ser mais objetivas e o que vale para uma das partes, não valeria para a outra, ou, em processos congêneres perante juízes diferentes, o que vale para uns jurisdicionados não valeria para outros, o que é, para dizer o mínimo, inaceitável porque fere de morte além da garantia constitucional prevista no inciso II do artigo 5º da Constituição Federal, as garantias prometidas nos incisos LIV e LV do mesmo artigo 5º, consistentes das cláusulas do devido processo legal e da ampla defesa.

Sobe o devido processo legal é suficiente dizer que não basta ser devido, é preciso ser legal, o que significa que é necessário que siga as normas que o disciplinam, as quais devem ser portadoras de certeza e segurança jurídica, isto é, de previsibilidade sobre como o processo irá desenvolver-se ao longo de sua marcha no tempo e que atos podem, como e quando, ser praticados.

O fato de o artigo 2º da Lei 9.099/1995 estabelecer diretivas principiológicas orientadoras do processo perante o Juizado Especial Cível que privilegiam os "critérios da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade" não chega a ponto de prescindir a observância de certos regramentos responsáveis pela certeza do direito e segurança jurídica.

Em nosso sistema, inaugurado pela Constituição Federal, não tem guarida a delegação de poderes para que o juiz aja como legislador. Não há em nosso ordenamento nenhuma norma com a que existe em legislações alienígenas segundo as quais, quando a lei for omissa, o juiz deva decidir como se legislador fosse. Entre nós vige um sistema de competências rígidas, bem definidas. E a competência para legislar em matéria processual é exclusiva da União (CF, artigo 22, I). Portanto, juiz não pode legislar. E se não pode legislar, “a fortiori” não pode criar norma de direito processual civil, qualquer que seja a competência para a ação (Justiça Comum, Federal, ou Juizado Especial).

As diretrizes principiológicas que povoam o artigo 2º da Lei 9.099/1995 têm utilidade para compreender as normas daquela lei e aquelas do Código de Processo Civil que se aplica supletivamente por expressa disposição legal. Atinam com o “enforcement” dessas normas, mas não constituem um alvará para revogá-las porque só quem pode revogar alguma lei é o Poder Legislativo, a menos que o Judiciário não respeite mais a divisão de competências estabelecida pela Constituição Federal e o dever de harmonia entre os poderes, expressamente prescrito em seu artigo 2º.

A Lei 9.099/1995 foi concebida sem qualquer disposição sobre alguns recursos e sobre o critério de fluência e contagem de prazos. Contudo tal defectibilidade da lei especial resolve-se com a aplicação da lei geral (LINDB, artigo 2º, § 2º), “in casu” a Lei 5.869/1973, o antigo Código de Processo Civil que se harmonizam segundo os preceitos da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB, Decreto-lei 4.657/1942), e, naturalmente, sob a orientação científico-doutrinária da hermenêutica jurídica a respeito dessa matéria.

Com base nessas fontes de conhecimento científico sedimentou-se o entendimento em prol da admissibilidade, do agravo de instrumento como expediente recursal útil para desafiar decisões interlocutórias proferidas no âmbito dos Juizados Especiais Cíveis. A contagem dos prazos previstos na Lei 9.099/1995 sempre foi feita em conformidade com as regras previstas no CPC/1973, agora revogado.

Sustentar a incompatibilidade de diálogo entre essas fontes de direito implica fazer submergir o jurisdicionado nas trevas da ausência de norma sobre diversas questões, sujeitando-o às subjetividades solipsistas e discricionárias do juiz, eliminando toda certeza e segurança jurídica do direito e do processo perante o Juizado Especial Cível.

Malgrado nem a Lei 9.099/1995, nem o CPC/1973 contenham qualquer norma expressa no sentido de determinar a aplicação supletiva deste em relação àquela, a supletividade é uma consequência do próprio sistema jurídico em vigor com baldrame legal nas disposições da LINDB, bem como reflexo do desenvolvimento científico do direito em geral e do direito processual em específico. Exatamente em razão disso o CPC/1973 sempre se aplicou supletivamente aos processos perante o Juizado Especial Cível desde o advento da Lei 9.099/1995.

No caso do novo Código de Processo Civil a supletividade deste em relação à Lei 9.099/1995 conta com expressa disposição legal contida no § 2º do artigo 1.046, segundo o qual “Permanecem em vigor as disposições especiais dos procedimentos regulados em outras leis, aos quais se aplicará supletivamente este Código”. Ou seja, naquilo que a Lei 9.099/1995 é omissa, por imperativo da certeza do direito e da segurança jurídica, a lacuna é colmatada pelas disposições do novo CPC.

Por exemplo, no âmbito dos Juizados Especiais deve admitir-se a interposição de agravo de instrumento nas hipóteses previstas pelo novo CPC; as decisões monocráticas proferidas por relator do Colégio Recursal caberá agravo interno para o órgão competente; as sentenças proferidas pelos juízes do Juizado Especial Cível , dispensado o relatório na forma do artigo 38 da Lei 9.099/1995, deve observar as disposições do artigo 489 do novo CPC, ainda que de modo sucinto, porque os “elementos de convicção do juiz” devem decorrer da síntese que faz a partir da tese e da antítese representadas pelos argumentos relevantes agonísticos deduzidos pelas partes; os embargos de declaração, contudo, no âmbito do Juizado Especial Cível, possui disciplina especial, de modo que sua interposição não interrompe o prazo para outros recursos, mas apenas o suspende, de sorte que o prazo volta a correr pelo tempo que faltava quando os embargos foram interpostos; por fim, os prazos no Juizado Especial continuam sendo aqueles previstos na lei especial, e só quando nesta não houver previsão é que serão os do CPC; a contagem, porém, deve seguir os critérios adotados pelo CPC, uma vez que a Lei 9.099/1995 não possui qualquer norma que discipline a contagem dos prazos processuais no âmbito do Juizado Especial Cível.

Não interessa ao Estado, nem à sociedade, um processo célere, porém imperfeito, com resultado injusto e contrário ao direito material. A celeridade do processo não pode ser um valor superior à qualidade do serviço de prestação jurisdicional e muito menos ainda superior ao que é justo, conforme o direito, conforme a lei. Daí por que a razoável duração do processo deve ser vista como um valor, uma meta a ser perseguida, mas sempre conforme as normas legais que disciplinam a marcha processual, entre elas as possibilidades de recurso, porque o recurso representa a revisão de uma decisão para escoimá-la de eventuais vícios a fim de garantir o resultado justo e conforme o direito, tudo a ser alcançado no tempo previsto em lei para a prática dos atos processuais. Em síntese, razoável duração do processo é aquela necessária para uma decisão qualificada como justa e de acordo com a lei.

Finalmente, por mais que os juízes não gostem, devem sempre ser lembrados que seus poderes não são absolutos. Antes, são limitados por uma vontade soberana que paira acima deles como de todos nós: a vontade da lei. Afinal, estamos ou não todos sob o império da lei? Demais disso, respeitar, cumprir e aplicar as leis e a Constituição é um dever ético e moral de todo juiz em cumprimento do compromisso assumido ao prestar solene juramento em tal sentido quando toma posse do cargo (artigo 79 da Loman).

À guisa de conclusão, o novo CPC tem sim aplicação supletiva em relação à Lei 9.099/1995. E a aplicação supletiva não é meramente subsidiária, porquanto suplementar significa acrescer o que falta, de modo que as normas do CPC devem aplicar-se aos procedimentos disciplinados pela Lei 9.099/1995 sempre que esta não tenha disciplina própria existente naquele e com a qual não encete conflito frontal.