sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

A extinção da punibilidade da pessoa jurídica em razão da morte do agente

 10 de dezembro de 2020, 18h57

Por José Rodolfo Bertolino

No presente texto, abordaremos o princípio da pessoalidade (intranscendência), previsto no artigo 5º, XLV, da Constituição Federal/88, em especial sua relação e aplicação jurisprudencial a pessoas jurídicas como agentes de crime. Referida disposição constitucional prevê que a pena aplicada não deve ultrapassar a pessoa do agente.

Segundo Gilmar Mendes e Paulo Gonet Branco [1]:

"A Constituição Brasileira conferiu tratamento amplo e diferenciado às questões associadas à pena e à execução penal. O inciso XLV do artigo 5º estabelece o caráter pessoal da pena, prevendo que a lei poderá dispor sobre obrigação de reparar e sobre decretação de perdimento de bens. (...) O princípio da responsabilidade pessoal fixa que a pena somente deve ser imposta ao autor da infração. O Supremo Tribunal Federal já teve a oportunidade de assentar, por exemplo que 'vulnera o princípio da incontagiabilidade da pena a decisão que permite ao condenado fazer-se substituir por terceiro estranho ao ilícito penal, na prestação de serviço à comunidade'".

 

Tal máxima influenciou, de maneira direta, o estabelecimento da relação de causalidade de um delito, prevista no artigo 13 do Código Penal, a qual dispõe que o resultado de um crime é somente imputável a quem lhe tenha dado causa. Em outras palavras, a responsabilidade pela prática de infrações penais deve ser atribuída apenas àquele que tenha efetivamente praticado (seja por ato comissivo ou omissivo) a conduta, ou ainda que tenha eventualmente concorrido para a sua prática.

 

Pois bem. Estabelecido minimamente o conceito de relação de causalidade entre a conduta praticada e a pessoa do agente, avança-se para o tema central do presente texto: a extinção da punibilidade atribuída ao agente, em especial, de pessoas jurídicas.

 

Nos dizeres de Cezar Roberto Bitencourt [2], a pena não é o elemento do crime, mas, sim, consequência natural da prática de uma ação típica, antijurídica e culpável. Todavia, existem situações que obstam a aplicação e/ou a execução da reprimenda estabelecida para a conduta praticada. Em tais hipóteses, opera-se a extinção não do delito em si, mas, sim, do direito estatal de punir a infração cometida pelo agente.

 

O artigo 107 do Código Penal, em seus incisos de I a IX, dispõe todas as situações em que se deve operar a extinção da punibilidade, ficando o agente livre do cumprimento de qualquer tipo de medida. Aqui, destaca-se que "agente" se refere tanto à pessoa física quanto à pessoa jurídica (relembrando, claro, que a atribuição de responsabilidade criminal a entes morais é permitida apenas em questões relacionadas a crimes ambientais — artigo 225, §3º, CF/88).

 

Quando tratamos de uma pessoa física, a situação é simples, uma vez que o ciclo de vida de um indivíduo é conhecido por todos: 1) nascimento; 1) crescimento; 3) envelhecimento; e 4) morte. No entanto, e com relação a entes não naturais? Como se comprova a "morte" de uma pessoa jurídica?

 

Para obtenção da resposta, é necessário tecer breves comentários sobre referidos entes morais. A legislação brasileira não fornece uma definição específica sobre empresa, mas, sim, sobre o empresário (artigo 966, do Código Civil). Em termos leigos (não legais), empresa se resume a uma espécie de sistema econômico criado para oferecer à sociedade determinado produto e serviço. Sua "vida" é iniciada a partir de sua inscrição (CNPJ e inscrições estaduais) perante os órgãos estaduais competentes e registro de seus atos constitutivos (artigo 985, do Código Civil). Ora, se considerarmos que a vida está diretamente relacionada ao CNPJ, pode-se entender por a "morte" da pessoa jurídica quando se opera o cancelamento de sua identidade/inscrição no cadastro nacional e consequente perda de personalidade jurídica.         

 

De acordo com o ordenamento jurídico brasileiro (Código Civil e Lei das Sociedades Anônimas [3]), tal situação pode ocorrer nas hipóteses de incorporação — absorção de uma ou mais sociedades por outra —, fusão — união de duas ou mais sociedades para formação de uma terceira — e cisão — transferência de patrimônio para sociedades já existentes ou constituídas apenas para este fim.

 

O entendimento está, inclusive, consolidado na jurisprudência dos tribunais [4], representado abaixo por um julgado do Superior Tribunal de Justiça. Vejamos:

 

"Processual civil. Incorporação. Sucessão processual. Agravo regimental interposto por terceiro (incorporador). Sociedade recorrida (incorporada) extinta. Demonstração posterior ao ato de interposição. Inteligência da súmula nº 115 do STJ, aplicada por analogia. Conforme disciplina a Lei nº 6.404, de 15/12/1976 (Lei das Sociedades por Ações), a incorporação — operação pela qual uma ou mais sociedades são absorvidas por outra — enseja a extinção da personalidade jurídica da sociedade incorporada, equiparando-se, para efeitos legais, à morte da pessoa física ou natural. (...) 4. Agravo regimental não provido" (STJ — 2ª T. — AgRg no REsp 89.557/RS — relator ministro Mauro Campbell Marques — DJe 27/10/2010).

 

Pois bem. Fixadas as hipóteses de "morte" da pessoa jurídica, passa-se a entender se (e como) referida situação jurídica pode ser interpretada quando relacionada ao Direito Penal. A situação é peculiar, controversa e vem ganhando espaço nos tribunais brasileiros.

 

Há quem diga que, por conta da possibilidade de sucessão de obrigações entre sociedades incorporadas, cindidas ou que foram objeto de fusão, é possível que a responsabilidade criminal também seja transmitida, logo, não haveria óbice ter como iniciada uma persecução penal contra uma pessoa jurídica que já "não existe mais". Tal situação, com a devida vênia, está equivocada, uma vez que, de acordo com o princípio da pessoalidade (ou instranscendência), a reprimenda penal jamais ultrapassará o limite da pessoa do agente (artigo 5º, XLV, CF/88), sendo vedada, de maneira expressa, a transposição/transferência de penas e de responsabilidade penal.

 

Ou seja, terceiros estranhos à empreitada criminosa não podem, em hipótese alguma, serem responsabilizados e objeto de punição pelo Direito Penal.

 

E não é só. Em se tratando de Direito Penal, deve-se observar o princípio da estrita legalidade, o qual obsta a utilização de analogia jurídica para criação de tipos penais incriminadores e/ou em malefício ao réu/acusado. Em outras palavras, se não existe dispositivo legal que permita a transferência de responsabilidade penal em casos de operações societárias (o que não existe em nosso ordenamento jurídico), tal hipótese jamais deve ocorrer.

 

O raciocínio contrário, no entanto, é permitido. Vejamos.

 

A Lei 9.605/98, que trata especificamente de delitos cometidos contra o meio-ambiente e da possibilidade de responsabilização criminal de pessoas jurídicas, é silente no tocante ao reconhecimento da extinção da punibilidade de agentes de crimes ambientais em razão da "morte" do agente. Tal situação nos leva diretamente a uma disposição geral de referida lei (artigo 79), a qual determina que, na ausência de normas legais específicas, aplicam-se subsidiariamente, por extensão, as normas previstas nos Códigos Penal e de Processo Penal.

 

Dessa forma, por analogia arrimada no artigo 107, I, do Código Penal, o qual prevê a extinção da punibilidade em razão da morte do agente, nos parece extremamente possível o reconhecimento quando se trata de agente pessoa jurídica, sobretudo em razão da extinção de sua personalidade jurídica.

 

O Superior Tribunal de Justiça já se deparou com o tema (HC 283.807) e determinou a aplicação, por analogia, de referido dispositivo legal em situação em que se operou a extinção da personalidade jurídica de um ente moral, determinando o reconhecimento da extinção da punibilidade em razão da morte do agente:

 

"2. Preliminares 2.1. Da extinção da punibilidade em relação a pessoa jurídica. A despeito das várias preliminares suscitadas pela Iron Construtora e Incorporadora Ltda. e seu representante nas contrarrazões de fls. 408/453, constata-se que a empresa foi extinta por força de liquidação voluntária, inclusive com baixa de seu CNPJ, com se confere de fls. 458/459. Nessa hipótese, aplica-se analogicamente o artigo 107, I, do CP, para declarar a extinção da punibilidade, mesmo porque, como bem frisou o MPF às fls. 471/472, uma das consequências que lhe seria imposta diante de eventual condenação seria exatamente sua liquidação forçada, a teor do artigo 24 da Lei nº 9.605/98, valendo frisar que o MPF direcionou acusação também contra aqueles a quem reputa os verdadeiros dirigentes da empresa, sem prejuízo da apuração de responsabilidade, a princípio. Portanto, declaro extinta a punibilidade da denunciada Iron Construtora e Incorporadora Ltda.".

 

O Tribunal de Justiça do Paraná, recentemente, concedeu liminar, em sede de mandado de segurança [5], determinando a suspensão de ação penal intentada contra pessoa jurídica com base justamente na possibilidade de reconhecimento da aplicação do artigo 107, I.

 

O caso, que versa sobre a suposta prática do delito de poluição qualificada (artigo 54, §2º) por empresa incorporada por um grupo empresarial, tramita perante a comarca de Arapongas (PR), cuja materialidade delitiva, de acordo com o Ministério Público Estadual, restaria comprovada por fotografias. À época, a denúncia foi oferecida apenas contra a pessoa jurídica, não tendo a conduta sido imputada a nenhum dos sócios então responsáveis pela empresa.

 

Em sua decisão, o desembargador José Maurício Pinto de Almeida pontuou que a perda da personalidade jurídica em razão da empresa ré ter sido incorporada altera sua capacidade e possibilidade de estar em juízo, de modo que não seria possível o exercício de qualquer pretensão penal contra referida empresa:

 

"Sob o aspecto da extinção da pessoa jurídica, a empresa ora incorporada (Agrícola Jandelle S.A.) perde a sua capacidade de estar em Juízo como polo passível de punição, inviabilizando-se o exercício de qualquer pretensão penal dirigida em desfavor daquela, obstando-se a punição da incorporadora (Seara Alimentos Ltda.) em face do princípio da intranscendência. Consigne-se que, em tese, se está extinta a pessoa jurídica (CNPJ 74.101.569/0008-56), há um fim — uma baixa —, e, com este fim, poderia entender-se que, por analogia, ocorreu a morte do denunciado, ocorrendo a extinção da punibilidade nos termos do artigo 107, inciso I, do CP. (...) Todavia, não obstante o supra relatado, determino, ao momento, e por cautela, tão somente a suspensão do trâmite do processo criminal nº 0000031-44.2012.8.16.0045 até o julgamento do mérito deste mandamus".

 

O entendimento do TJ-PR contrariou argumento levantado pelo Ministério Público Estadual de primeira instância, o qual alegou que a garantia constitucional levantada no caso (princípio da intranscendência) estaria sendo utilizada apenas para que a empresa denunciada se furtasse de eventual responsabilização criminal.

 

A decisão do eminente desembargador soa extremamente acertada, uma vez que, com base no exposto acima, é plenamente plausível reconhecer-se a extinção da punibilidade de um agente pessoa jurídica em razão de sua morte com base em interpretação analógica do artigo 107, I, do Código Penal. Além disso, não há que se falar, em hipótese alguma, em manobra evasiva, uma vez que a garantia está prevista no rol de princípios e garantias fundamentais da CF/88, pedra angular de um Estado democrático de Direito, e à defesa cabe a utilização de qualquer argumento que beneficie os interesses de seus clientes.

 

Não se pode olvidar também que, além da garantia constitucional que veda a transferência de responsabilidade, em se tratando de matéria penal, não se permite a incidência de obrigação propter rem, uma vez que, para fins de responsabilização e aplicação de eventual sanção, o elemento subjetivo da conduta ilícita praticada deveria ser demonstrado de maneira clara, e não presumido em razão de uma aquisição societária.

 

A Procuradoria-Geral de Justiça, ao se pronunciar em referidos autos, manifestou-se totalmente favorável à concessão da segurança e do reconhecimento da extinção da punibilidade da pessoa jurídica em questão. Referida manifestação ministerial, apoiada em julgado exarado pelo Superior Tribunal de Justiça (Resp 1.251.697/PR), além de destacar que o princípio da intranscendência deve ser plenamente aplicado não apenas ao Direito Penal, mas também a todo e qualquer direito sancionador, pontuou, conforme destacado acima, a não incidência de obrigação propter rem no Direito Penal:

 

"Dito isto, pondero que no presente caso não se cogita de reconhecimento de trancamento de ação penal por inépcia da denúncia ou por ausência de justa causa, como aliás bem decidido no deferimento da liminar e exposto na contestação da Promotoria de Justiça (que adoto, neste aspecto, como fundamento deste parecer), porém merece redobrada atenção a questão que envolve a sucessão de empresas (...).

No âmbito civil já é pacífico que a obrigação de reparar dano ambiental é propter rem, aliás, neste último caso a Súmula 623, do Superior Tribunal de Justiça é clara ao dispor que: 'As obrigações ambientais possuem natureza propter rem, sendo admissível cobrá-las do proprietário ou possuidor atual e/ou dos anteriores, à escolha do credor'.

Por outro lado, no nosso ordenamento jurídico não se cogita de uma responsabilização administrativa e sobretudo criminal sob o pretexto de que a obrigação de reparar tem natureza propter rem, como querem o Juízo a quo e a Promotoria de Justiça".

 

Ou seja, em se tratando de Direito Penal, não é permitida sucessão corporativa, situação em que ocorre a transferência de passivos e ativos.

 

No julgamento de mérito, ocorrido neste dia 10 de dezembro, e conduzido pela 2ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Paraná, foi determinado, por votação unânime, o trancamento de referida ação penal. O entendimento firmado pela turma julgadora fui justamente pelo reconhecimento da extinção da punibilidade (pela morte do agente) em razão da extinção da pessoa jurídica acusada.

 

Segundo a turma julgadora, haveria óbice no reconhecimento da modalidade de extinção em situações em que fosse possível a comprovação de que determinada operação societária teria como único objetivo burlar eventual responsabilização criminal, o que não ocorreu no caso julgado.

 

Assim, conforme já dito acima, o tema ainda é controverso, e certamente ganhará cada vez mais espaço nos tribunais brasileiros, nos restando apenas aguardar e torcer para que as discussões sejam ricas em argumentos e que o entendimento seja cada vez mais consolidado.

 

[1] Mendes, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 14 ed. — São Paulo: Saraiva Educação 2019.

[2] Bitencourt, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte geral 1. 21 ed — São Paulo: Saraiva, 2015: p. 881.

[3] Artigo 227 a 229 da Lei 6.404/76 e artigo 1116 a 1122 do Código Civil.

[4] No mesmo sentido: TJ-SC Apelação Cível 0014854-54.2008.8.24.008, TRF 3 Apelação Cível 0011383-17.2013.4.03.6105, TJSC Apelação Cível 0000182-71.2013.8.24.0006.

[5] TJ-PR Mandado de Segurança nº 0038170-25.2020.8.16.0000.

José Rodolfo Bertolino é advogado, especialista em Direito Penal Econômico pela Fundação Getúlio Vargas e integrante do departamento jurídico da empresa JBS S.A..

 

sábado, 5 de dezembro de 2020

Disputa entre Gradiente e Apple pela marca "iphone" será objeto de mediação no STF


O ministro Dias Toffoli determinou a remessa do caso ao Centro de Conciliação e Mediação da Corte, criado este ano.


04/12/2020 17h31 

O ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal (STF), encaminhou o Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 1266095, em que se discute a exclusividade do uso da marca Iphone no Brasil, ao Centro de Conciliação e Mediação da Corte. O órgão, criado pela Resolução 697/2020, tem o objetivo de atuar na solução consensual de questões jurídicas sujeitas à competência do STF.

Registro

Em 2000, a IGB Eletrônica, dona da marca Gradiente, solicitou junto ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial (Inpi) o registro da marca Gradiente Iphone, para designar aparelhos celulares e produtos acessórios de sua linha de produção. O pedido foi deferido somente em 2008, e, em 2013, a empresa norte-americana Apple, fabricante do iPhone desde 2007, ajuizou ação contra a IGB e o Inpi visando à nulidade parcial do registro.

Sem exclusividade

O juízo da 25ª Vara Federal do Rio de Janeiro (RJ) julgou o pedido procedente e determinou ao Inpi que o concedesse “sem exclusividade sobre a palavra iphone isoladamente”.

A decisão foi mantida pelo Tribunal Regional Federal da 2ª Região, que entendeu que o direito de uso exclusivo da marca não é absoluto. Segundo o TRF-2, é preciso levar em consideração o fato indiscutível de que os consumidores e o mercado, quando pensam em iphone, “estão tratando do aparelho da Apple”. Assim, o uso isolado da marca por qualquer outra empresa poderia causar “consequências nefastas” à Apple.

Fato consumado

No ARE, a Gradiente argumenta que, conforme registrado no acórdão do TRF, é incontroverso que o depósito da marca foi feito em 2000 e que o registro só foi deferido pelo Inpi em janeiro de 2008. “Nesse momento, o iPhone da Apple, lançado em 2007, já era uma febre mundial, muito em razão de enormes investimentos em publicidade”, afirma.

Segundo a empresa brasileira, o fundamento adotado para o acolhimento do pedido da Apple teria sido a existência de um fato consumado, e a definição do titular da marca teria levado em conta o critério da opinião dos consumidores. Para a Gradiente, esse entendimento do TRF “subverte completamente o sistema brasileiro de propriedade intelectual, substituindo o princípio da prioridade no depósito pelo do sucesso na exploração”.

Em junho, o ministro Dias Toffoli negou seguimento ao recurso interposto ao STF, assentando que a análise da causa demandaria interpretação da legislação infraconstitucional e reexame dos fatos e das provas, o que não é cabível em recurso extraordinário. Em seguida, a Gradiente interpôs agravo regimental visando à reforma da decisão monocrática.

Mediação

Ao suspender e processo e remetê-lo ao Centro de Conciliação e Mediação, Toffoli lembrou que o relator pode adotar essa providência em qualquer fase processual, para que sejam realizados os procedimentos a fim de buscar a composição consensual da lide. A decisão da remessa levou em conta que a questão discutida no recurso versa sobre direitos patrimoniais disponíveis.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

Quarta Turma vincula dano moral a interesses existenciais e afasta indenização por frustração do consumidor

Ao reformar condenação por danos morais estabelecida pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) em favor de um cliente que ficou frustrado na compra de um automóvel, a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) definiu balizas para a configuração da ofensa real aos chamados interesses existenciais – aquela que, segundo o colegiado, pode efetivamente dar margem a indenização.

Segundo a turma, são interesses existenciais aqueles tutelados pelo instituto da responsabilidade civil por dano moral. Assim, na visão dos ministros, não estão abrangidos – ainda que possam ser lamentáveis – os aborrecimentos ou as frustrações na relação contratual, ou mesmo os equívocos cometidos pela administração pública, ainda que demandem providências específicas, ou mesmo o ajuizamento de ação.

"Essas situações, em regra, não têm a capacidade de afetar o direito da personalidade, interferindo intensamente no bem-estar do consumidor (equilíbrio psicológico, isto é, saúde mental)", afirmou o ministro Luis Felipe Salomão.

Alienação anterior

De acordo com o processo, o cliente adquiriu o veículo usado em uma loja e pagou parte do valor total por meio de financiamento bancário. Segundo o consumidor, o banco demorou 90 dias para enviar o contrato – período em que ele pagou as prestações normalmente. Quando procurou o despachante para fazer a transferência, descobriu que o carro estava alienado fiduciariamente a outra instituição financeira, o que tornava inviável a operação. Além disso, o cliente afirmou que o automóvel apresentou defeitos mecânicos.

Em primeira instância, o juiz declarou rescindido o contrato e condenou a loja e a instituição financeira a devolverem os valores pagos pelo cliente. O TJSP também condenou as rés, de forma solidária, ao pagamento de danos morais no valor de dez salários mínimos, por entender que ficaram comprovadas a frustração do comprador e a falta de interesse das empresas em resolver a situação.

Dano efetivo

Relator do recurso do banco, o ministro Salomão destacou que, embora o autor tenha dito que pagou três prestações por receio de que seu nome fosse incluído em cadastro negativo e o veículo sofresse busca e apreensão – o que poderia, de fato, levar a um abalo moral –, tais problemas não se concretizaram. Além disso, observou o ministro, não foram efetivamente comprovados os danos apontados no veículo.

Assim – disse o relator –, os danos morais reconhecidos pelo TJSP estão limitados aos dissabores do cliente por não ter rápida solução do problema na esfera extrajudicial, o que o levou a registrar boletim de ocorrência policial.

Ao descrever entendimentos divergentes nas turmas do STJ, o ministro ressaltou que o Código de Defesa do Consumidor estipula que, para a caracterização da obrigação de indenizar, não é decisiva a questão da ilicitude da conduta, tampouco o fato de o serviço prestado não ser de qualidade, mas sim a constatação efetiva de dano ao bem jurídico tutelado.

"Como bem adverte a doutrina especializada, é recorrente o equívoco de se tomar o dano moral em seu sentido natural, e não jurídico, associando-o a qualquer prejuízo incalculável, como figura receptora de todos os anseios, dotada de uma vastidão tecnicamente insustentável, e mais comumente correlacionando-o à dor, ao aborrecimento, ao sofrimento e à frustração", comentou.

Autonomia privada

Ainda com amparo na doutrina, Salomão afirmou que há risco em se considerar que os aborrecimentos triviais e comuns podem ensejar a reparação moral, "visto que, a par dos evidentes reflexos de ordem econômico-social deletérios, isso tornaria a convivência social insuportável e poderia ser usado contra ambos os polos da relação contratual".

Ao afastar os danos morais fixados em segunda instância e restabelecer a sentença, Salomão observou que, não havendo efetivo prejuízo aos interesses existenciais, a indenização de cunho moral acaba por encarecer a atividade econômica, com reflexos negativos para o consumidor.

"O uso da reparação dos danos morais como instrumento para compelir o banco e a vendedora do veículo a fornecer serviço de qualidade desborda do fim do instituto", declarou o ministro, destacando que não cabe ao Judiciário impor as limitações eventualmente necessárias à autonomia privada, pois isso poderia trazer consequências imprevisíveis no âmbito do mercado, em prejuízo dos próprios consumidores – principalmente dos mais vulneráveis.


REsp 1406245