sexta-feira, 19 de junho de 2015

O Transporte de Cortesia e a Responsabilidade Civil - Morte do Carona

CIVIL - TRANSPORTE DE CORTESIA (CARONA) - MORTE DO ÚNICO PASSAGEIRO - INDENIZAÇÃO - RESPONSABILIDADE OBJETIVA - NÃO-CABIMENTO - SÚMULA Nº 145-STJ - No transporte desinteressado, de simples cortesia, o transportador só será civilmente responsável por danos causados ao transportado quando incorrer em dolo ou culpa grave ( Súmula nº 145-STJ ). Na espécie, padece o acórdão recorrido de flagrante dissídio com o entendimento desta Corte quando, firmando-se na tese da responsabilidade objetiva, despreza a aferição de culpa lato sensu (dolo e culpa grave). Recurso Especial conhecido e provido. (STJ - REsp 153.690/SP - 4ª T. - Rel. Min. Fernando Gonçalves - DJU 23.08.2004 )

Comentário
O Transporte de Cortesia e a Responsabilidade Civil - Morte do Carona
POR ÊNIO SANTARELLI ZULIANI
Desembargador do TJSP, Professor de Direito Civil.

A discussão sobre a responsabilidade civil por danos de acidentes fatais ou com graves seqüelas aos passageiros que são transportados por cortesia (carona) continua polêmica, apesar de sua antiguidade, dada a sua recorrência no cotidiano dos motoristas que são solidários. Waldemar Martins Ferreira advogou em rumoroso acidente no ano de 1926, envolvendo jovens ricos de São Paulo, que foram passear, com uma "baratinha" branca, marca "Bianchi", registrada sob nº 2.118, quando, rente ao mar da Praia Itararé, em São Vicente, colidiu com um carro que vinha em sentido contrário; no choque, um dos amigos que viajava sentado na carroceria foi arremessado e, com a queda, veio falecer. O pai da vítima exigiu indenização ao pai do motorista, o que permitiu a Waldemar Ferreira escrever sobre o transporte gratuito (Apelação Civil nº 17.538, in A responsabilidade por acidente no transporte gracioso por automóvel, RT, 1930. p. 16):

"Não seria justa a teoria que chegasse à isenção completa de responsabilidade do condutor de automóvel no caso de transporte benevolente ou gracioso, mas também é fora de controvérsia que essa responsabilidade não pode ser encarada como a do transportador ou condutor profissional. Os dois casos são bem diferentes e diferentes as responsabilidades."

Os juízes devem se empenhar para que o povo confie na Justiça que se presta pela jurisdição e, nesse setor, devemos nos orgulhar dos Tribunais, que são fiéis aos seus precedentes, exatamente porque a coerência dos julgamentos espelha a jurisprudência segura, que oferece estabilidade jurídica. As súmulas que os Tribunais publicam, sintetizando suas convicções acerca de um ponto polêmico do sistema jurídico, são, além de provas das diretrizes estabelecidas, elementos reais da previsibilidade das decisões futuras, estrutura de tratamento isonômico para os litigantes.

As súmulas de jurisprudência são sementes de uma lavoura cujos frutos prometem salvar da indigência jurídica o homem. Os alimentos orgânicos que se colhem como riquezas da terra enrijecem o corpo; as decisões que brotam das súmulas iluminam a alma e dão-nos a esperança de que viver em sociedade é permitido, apesar dos conflitos que surgem, em virtude de existir um órgão judicial que pacifica as crises existenciais com neutralidade, justiça e certeza.

O que se acaba de escrever poderá ser avaliado com o conforto e a tranqüilidade espalhados pela recente Súmula nº 302 do STJ , voltada aos pacientes que contratam planos e seguros de saúde, conferindo a eles esperança contra as agruras das doenças e das despesas médicas e hospitalares que elas produzem quando se procura a cura ou um tratamento digno. Estabeleceu-se o seguinte: "É abusiva a cláusula contratual de plano de saúde que limita no tempo a internação hospitalar do segurado". Todos sabem que as cláusulas fixando cobertura de 10, 15, 30 ou quantos dias forem, para internação, são ineficazes, porque ofendem os direitos básicos do consumidor (art. 51, IV, da Lei nº 8.078/1990 ).

Contudo, da mesma maneira que os Tribunais se compromissam com a fidelidade de seus precedentes, haverão de se comportar com o mesmo altruísmo quando se fizer necessário rever uma súmula que claudica no espaço jurídico. Não se ignoram os impactos da revogação de Código Civil quase centenário, como o de 1916, pois o novo ( Lei nº 10.406 , de 10.01.2002) entra no cenário com toda a força do triunfo legislativo, respeitando determinadas verdades jurídicas que sobreviveram aos questionamentos, e modificando outras que eram, até então, construções que pareciam invulneráveis, inclusive estruturadas em súmulas.

A Súmula nº 145 exonera o transportador que, por cortesia, oferece carona no veículo de indenizar os danos que a pessoa transportada sofra em virtude de um acidente de percurso, para o qual não concorreu com culpa grave ou dolo. Esse enunciado resultou da interpretação do art. 1.057 do CC/1916 , porque se entendia que o transporte desinteressado se classificava como contrato unilateral (agora chamado de benéfico pelo CC/2002, art. 392 ), e que somente produz responsabilidade ao contratante que dele não se aproveita, por dolo.

Ocorre que o art. 736 do CC/2002 diz o seguinte:

"Art. 736. Não se subordina às normas do contrato de transporte o feito gratuitamente, por amizade ou cortesia.
Parágrafo único. Não se considera gratuito o transporte quando, embora feito sem remuneração, o transportador auferir vantagens indiretas."

Dar carona deixou, portanto, de constituir atividade contratual, seja concedida por particulares ou por empresas de transporte aéreo, marítimo, rodoviário e urbano. É forçoso admitir que a Súmula nº 145, do STJ , sofreu um ataque frontal e impiedoso, minando a força de suas bases, porque, a partir dessa reviravolta conceitual declarada pelo Código Civil, a obrigação de indenizar, no caso de transporte de cortesia, entra, finalmente, na reserva da responsabilidade aquiliana para a qual se aplica o princípio in lege Aquilia et levissima culpa venit ( arts. 186 e 927, caput, do Código Civil ).

Os doutrinadores são unânimes em considerar encerrado o ciclo da tese do contrato benéfico como disciplinador das conseqüências do ato de transportar gratuitamente pessoas. Carlos Roberto Gonçalves1 é incisivo: "A tese da responsabilidade aquiliana é, portanto, a que melhor se ajusta ao chamado transporte benévolo ou de cortesia". No mesmo sentido: Rui Stoco (Tratado de responsabilidade civil. 6. ed. São Paulo: RT, 2004. p. 420, cap. V, 16.00); Sílvio de Salvo Venosa (Direito civil: responsabilidade civil. São Paulo: Atlas, 2004. v. 4, p. 147); Sérgio Cavalieri Filho (Programa de responsabilidade civil. 5. ed. Malheiros, 2004. p. 314, item 95.4); Maria Helena Diniz (Curso de direito civil brasileiro. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. v. 7, p. 494, § c.3.5.1) e Zeno Veloso (Novo código civil comentado. Coordenação de Ricardo Fiúza. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 666).

Portanto, haverá responsabilidade de quem transporta, pelos danos do passageiro que se leva no carro, por gesto de fidalguia, de solidariedade para com o próximo, ainda que diante de um acontecimento gerado por culpa levíssima, aquele que ocorre mesmo por um deslize raríssimo de conduta ou que somente um homem extraordinariamente precavido não cometeria. Como declarou Luiz da Cunha Gonçalves, "o homem cortês não está isento de causar danos, até no exercício de sua amabilidade, porque a cortesia não é incompatível com a negligência ou a imprudência; tanto basta para que a sua responsabilidade seja exigida." (Tratado de direito civil. Max Limonad, 1957, t. I, v. XIII, p. 253).

Narrou-me um conhecido, até com uma ponta de orgulho, ter retrocedido sua viagem para resgatar uma senhora com uma criança de colo que se encontrava em um trevo de rodovia, quando intuiu que chuva forte prenunciada não tardaria a cair. Felizmente as criaturas indefesas foram salvas do aguaceiro e chegaram sãs e salvas ao destino. Porém, se o cortês motorista tivesse, no trajeto, perdido a direção por ter a visão prejudicada pela chuva ou por estar o vidro pára-brisa embaciado, capotando o carro e ferindo a mulher e matando a criança, estaria sujeito às indenizações do art. 948 do CC , apesar da culpa levíssima (deveria parar e aguardar a chuva acalmar, para seguir com segurança).

Atos de civilidade como esse e tantos outros que honram seus autores são nobres, não resta dúvida; todavia, quando, na execução deles, eclodir algo que provoque uma ruptura na expectativa do transporte seguro, que é natural pelo simples embarque (ninguém entra em carro, ônibus ou caminhão para se acidentar, mas, sim, para chegar incólume a um destino), haverá responsabilidade. O sistema jurídico emite sinais claros para arrefecer gestos de boa vontade dos motoristas que se dispõem a efetuar transporte desinteressado de pessoas, advertindo os juízes de que será preciso valorar, caso a caso, os acidentes com viajantes de favor, evitando privilegiar os motoristas com indulgência imerecida, sem, contudo, praticar excessiva compensação a quem assumiu o risco da viagem de carona.

O Acórdão escolhido como base parece perfeito para ilustração. Ao centralizar o respeitável pronunciamento do colendo STJ, cujo relator é o eminente Ministro Fernando Gonçalves, como alvo de comentários jurídicos, não se está pretendendo mandar recado de desestímulo à urbanidade que deve existir entre as pessoas, embora pareça mais sensato não dar carona do que assumir riscos obrigacionais por isso. O objetivo é o de analisar a questão da responsabilidade da sociedade empresária que explora o ramo de transporte de pessoas, por conduzir passageiros que não pagam o custo do bilhete, como o Policial Rodoviário que, infelizmente, morreu ao ser conduzido por ônibus de linha estadual. A seguir, o voto na íntegra:

"Exmo. Sr. Ministro Fernando Gonçalves (relator):
Declinam as razões do especial que a empresa recorrente, sediada no Rio de Janeiro, opera linhas intermunicipais de ônibus, vindo, nesta condição, adquirir um veículo novo, entregue em Caxias do Sul, Rio Grande do Sul, onde se localiza a fábrica de carrocerias.
No trajeto entre a fábrica e a cidade de Barra Mansa, seu preposto, motorista daquele veículo, veio a dar, por simples cortesia, carona a Moacir Ortega de Carvalho, policial rodoviário, que deixava o serviço no posto policial situado na Rodovia Presidente Dutra, à saída de São Paulo e se dirigia para Queluz, no mesmo Estado. No percurso houve o acidente, firmando as instâncias ordinárias a tese da responsabilidade objetiva, como se colhe do ven. acórdão (fls. 141/142), verbis:
'Discutem-se nos autos, basicamente, duas questões:
a) a da existência, ou não, de responsabilidade da empresa recorrente, e
b) a da reparabilidade, ou não, dos danos morais advindos da morte da vítima.
Com respeito à primeira, deve-se desde logo, assentar que nenhuma das teses levantadas pela transportadora é suscetível de vingar, de vez que a responsabilidade é, in casu, objetiva, diante da periculosidade da atividade exercida, que lhe impõe a assunção dos riscos próprios: ubi emolumentum, ibi ius (cf. dentre outros autores, E, Bonvicini: La possibilità civile, I, p. 252 e ss. e II, 697 e ss.; M. Comporti: Esposizione al periculo e responsabilità civile, p. 136 e ss. e 291 e ss.: Alpa e Bessone: La responsabilità civile, p. 433 e ss.).
Em conseqüência disso, afasta-se, de imediato, debate acerca da subjetividade do agente, ou seja, se operou, ou não, com culpa. É que, em hipóteses que tais, desloca-se o ônus da prova para a empresa, a quem competia demonstrar a existência de fato desconstitutivo do direito dos autores, ou, por outras palavras, de elemento excludente de responsabilidade, face ao caráter especial da responsabilidade em questão (v. Planiol e Ripert: Traité, VI, p. 996 e ss.; Mazeaud e Mazeaud: Leçons, 112, p. 541 e outros escritores) ora, isso, em verdade, não se fez, restando irrespondida a versão que os autores ofereceram ( CPC, art. 333 , II).'
E debatendo a tese da gratuidade do transporte como causa excludente da responsabilidade, ressalta o julgado:

'Insta anotar, ainda, que, no âmbito da teoria objetiva, não tem o alcance suscitado a argüição de gratuidade do transporte, cujo debate vem, aliás, movimentando, no circuito da teoria da culpa, doutrina e jurisprudência. De fato, realçada a base dessa teoria, perde expressão tal asserção, de vez que, tanto na área da responsabilidade contratual, como na da aquiliana, os efeitos são coincidentes: arca a empresa exploradora pelos ônus, diante do risco que explora, a menos que logre provar excludente hábil para respectiva elisão.' (fls. 144)
Neste contexto, do tema em apreço, não resulta maltrato aos dispositivos legais apontados, dado o direcionamento tomado pelo acórdão no sentido da responsabilização objetiva da recorrente, sendo a matéria colocada pelas partes amplamente debatida e decidida.

No tocante, entretanto, ao dissenso pretoriano, resta adequadamente esclarecido versar o caso simples transporte de cortesia, não evidenciando a sentença ou o acórdão a ocorrência de dolo ou culpa grave. A sentença fala em culpa presumida (fls. 93), dispondo o acórdão tratar-se de responsabilidade objetiva.

Em assim sendo, a referência exclusiva ao transporte de mera cortesia, atrai a incidência da Súmula nº 145 que fixa:

'No transporte desinteressado, de simples cortesia, o transportador só será civilmente responsável por danos causados ao transportado quando incorrer em dolo ou culpa grave.'
Tem-se, portanto que, demonstrado ser o transporte de cortesia e ausentes dolo ou culpa grave, até porque expressamente dispensados pelo acórdão recorrido, o dissenso interpretativo é flagrante.
Conheço do recurso e lhe dou provimento para julgar improcedente o pedido inicial.

Custas e honorários advocatícios, estes à razão de 10% sobre o valor da causa, a cargo dos autores, observando-se, entretanto, o art. 12 da Lei nº 1.060/50 , em face do deferimento do benefício da assistência judiciária (fls. 21)."

Segundo constou do voto declarado do digno Ministro Barros Monteiro, que integra o Acórdão, a morte da vítima deu-se quando o ônibus que a transportava colidiu com a parte traseira de um caminhão parado na pista, fato que, em princípio, não informa culpa do motorista surpreendido com o inerte obstáculo intransponível. É certo que poderia, segundo a dinâmica informada, cogitar da culpa presumida do motorista do ônibus porque colidiu com a parte traseira do veículo que estava a sua frente (presunção juris tantum), salvo quando esse outro frear bruscamente seu veículo, sem motivo ( art. 42 do CTB ). Portanto, para se concluir pela culpa do preposto da empresa de viação, seria necessário decidir contra aquele que realiza transporte benévolo, admitindo culpa presumida.

O Acórdão não aceitou essa diretriz, preferindo decidir pontuando os efeitos das regras que distribuem os ônus da provas e sancionam a falta de empenho pelo cumprimento deles. E o fez com absoluta razão, para que o processo cumprisse as metas da justiça social, pela garantia de julgar o transportador diante das reais circunstâncias do caso, eliminadas as presunções de culpa que seriam oportunas para contrato de transporte pago ou com remuneração em dinheiro ou em função de qualquer outro interesse material.

Assim, embora possível de especular a imprudência do motorista do ônibus e até do terceiro que imobilizou o caminhão na pista, cumpria, para que fosse a indenização sacramentada, estar devidamente confirmada a culpa, ainda que de natureza leve, do condutor do coletivo. Devemos, no entanto, monopolizar o exame na eventual culpa do terceiro, porque de culpa própria do motorista do ônibus não cuida o Acórdão e as provas dos autos. Acontece, que no transporte de pessoas, a culpa do terceiro não elide a responsabilidade do transportador, conforme estabelece o art. 735 do CC/2002 , um dispositivo que repete a Súmula nº 187 do STF . Portanto, mesmo diante do fato de o acidente ter sido derivado da perigosa parada do caminhão conduzido por um terceiro, os danos do passageiro serão ressarcidos, competindo à transportadora reclamar do culpado, em ação regressiva, o reembolso respectivo.

O grande desafio dessa polêmica resulta da interrogação de se aplicar tal enunciado ao passageiro que é transportado de maneira gratuita, por simples cortesia. O Policial que viaja sem pagar, no ônibus, está, sem dúvida, recebendo um favor, embora seja possível desconfiar o fato de se tratar de um ato não completamente desinteressado das empresas que atuam nas estradas. As regras de experiência que o juiz pode aplicar, na forma do art. 335 do CPC , permitem cogitar que os motoristas consentem o viajar de graça dos policiais rodoviários e militares das cidades que os ônibus atravessam, temerosos das represálias que acontecem com endurecimento das fiscalizações que esses profissionais efetuam nas estradas. Quem utiliza ônibus não testemunha esses privilégios aos civis, embora aos militares os favores desse tipo sejam freqüentes e rotineiros.

Contudo, apesar da oficialidade dessa política de cumplicidade para a qual as autoridades militares fecham os olhos por conveniência, o liberar poltronas para que militares em trânsito nas rodovias as ocupem sem nada pagar não escapa do conceito de gratuidade que caracteriza o transporte por cortesia ou benévolo. A eventual imoralidade do permitir a viagem sem pagamento de policiais militares não cria contrato, porque seria espúrio; preferível admitir que a gratuidade, que se caracteriza no ingresso de militares, moças bonitas, gente doente e pobre, decorre da completa ausência de retribuição pecuniária, um dado objetivo que serve para todas as situações em que se oculta uma segunda intenção na caridade.

A viúva e os filhos do Policial morto mereceriam indenização, na forma do art. 948 do CC ? O Acórdão respondeu que não e, com isso, rejeitou a versão da responsabilidade objetiva pelo serviço de transporte, a mesma que obriga o transportador a ressarcir, sempre, os danos de percurso (ainda que derivados de culpa de terceiro), em caso de passageiro transportado por cortesia.

O acerto do julgado é irrecusável. Devemos admitir que a Súmula nº 145 representou uma saída jurídica contra a aversão de se sancionar o motorista que nada mais fez do que um ato magnânimo (ajudar despretensiosamente uma pessoa que, sem recursos financeiros, necessita viajar). Por faltar coragem de aplicar a eqüidade na composição do dano ressarcível ao passageiro que sofre com culpa leve do generoso motorista que lhe deu carona, preferiu-se construir esse engenhoso e complicado mecanismo de interpretar o ato de dar carona como contrato benéfico, para, ao final, condenar somente o motorista que agiu com dolo ou culpa grave. Na Itália também se justificou o tratar com "nel danneggianti con indulgenza in questi casi" (L. Gaudino, in Diritto privato oggi - La responsabilità extracontrattuale, a cura di Paolo Cendon, diversos autores, Giuffrè, 1994, § 18 - rapporti de cortesia, p. 297).

Agora, isso não mais se justifica, pelo fim da era de se ter transporte gratuito como contrato ( art. 736 do CC/2002 ). No caso de transporte realizado por pessoas que não fazem do transportar o seu comércio ou serviço lucrativo, aplica-se, como já afirmado, os princípios da responsabilidade extracontratual (ou aquiliana), bastando, para ser imposto o dever de indenizar, a culpa levíssima ( art. 186 do CC /2002). Contudo, e em se cuidando de transporte empresarial, como um ônibus intermunicipal, incide a teoria objetiva, ou que manda ressarcir os prejuízos do passageiro independente da prova da culpa ou diante da culpa de terceiro?

O passageiro que viaja de graça rompe a comutatividade do contrato de transporte. Não se pode ignorar que é exatamente o preço exigido na compra do bilhete que legaliza o risco da atividade. O transportador, ciente de que se pagou pelo transporte, assume uma cláusula de garantia ou de resultado, pelo que, com a partida do ônibus, torna-se responsável pelo destino do passageiro que recepcionou. É um ônus que se estabelece em contrapartida ao lucro que se obtém, não sendo demasiado repetir que há, no contrato de transporte, uma função social predominante, qual seja, o interesse do Estado em proporcionar segurança e qualidade na circulação viária pelo rodar lucrativo. Tudo isso conspira para legalizar a responsabilidade objetiva do transportador; indeniza tudo, independente da culpa pelos danos que o passageiro suporta na viagem.

O carona não goza desse status de passageiro com garantias absolutas. A cláusula de segurança está inserida no contrato de transporte e o passageiro que viaja de graça não celebra contrato: portanto, para ele, não existe cláusula de segurança vigendo. Estabeleceu Carvalho de Mendonça (M.I., Contractos no direito civil brasileiro. Freitas Bastos, 1938. v. II, p. 147):
"Apesar de tudo, inevitável é admitir-se que o viajante, comprando seu bilhete de passagem e tomando assento no carro, completou, por uma aceitação incontestável, a oferta permanente da companhia feita diariamente nos cartazes, nos anúncios, na venda de bilhetes e nos comboios postos à disposição do público. É um verdadeiro contrato que pressupõe no viajante a certeza de contar com todos os meios de segurança e garantia de vida fornecidos pela empresa durante o percurso da viagem."
O transporte de cortesia e que Orlando Gomes chamou de "condescendência", não caracteriza "contrato", de modo que "a responsabilidade do transportador será, portanto, extracontratual, devendo reparar o prejuízo causado somente em caso de dolo ou culpa grave por injusto, fazendo um favor, respondesse na mesma medida do que transportava lucrativamente" (Contratos. Forense, 1973. p. 342).

Daí resulta que a culpa do terceiro, a qual não libera o transportador em caso de transporte contratual, exonera, sim, a responsabilidade na hipótese de transporte benévolo, hipótese em que se deu a viagem do Policial Militar que morreu no acidente. O mestre Aguiar Dias advogou essa tese quando analisou questão similar (Responsabilidade civil em debate. Forense, 1983. p. 185):
"Em nossa opinião, o fato de terceiro deve ser encarado, no transporte gratuito, como verdadeira excludente de responsabilidade. É iníquo carregar as suas conseqüências a quem ele não pode ser atribuído como um risco de sua atividade."

O jurista português Antunes Varela afirmou que admitir a responsabilidade objetiva do transportador que, por liberalidade, consente em transportar gratuitamente a vítima do acidente, violentaria a "eqüidade", devido à "injustiça de se impor responsabilidade sem culpa a quem forneceu o transporte sem correspectivo da outra parte" (Das obrigações em geral. Coimbra: Almedina, 1973. p. 543). A responsabilidade objetiva que se aplica para o transporte contratual cessa quando o transporte é gratuito, reafirma outro respeitável doutrinador lusitano (COSTA, Mário Júlio de Almeida. Direito das obrigações. Coimbra: Almedina, 1973. p. 414).

É importante registrar que a culpa, para justificar a responsabilidade daquele que transporta por cortesia, não necessita ser grave; contudo não se admite que se presuma a culpa do motorista (PLANIOL; RIPERT. Tratado practico de derecho civil francês. Tradução de Mário Dias Cruz. Havana: Cultural, 1940. v. VI, p. 854, § 622). Viajar de favor não concede imunidade ao motorista, mas, de igual modo, não lhe deve estigmatizar a conduta, como se fosse culpado até prova em contrário. Karl Larenz afirmou: "en principio el conductor ha de responder frente al viajero admitido gratuitamente por la diligencia usual en el tráfico" (Derecho de obligaciones. Tradução de Jaime Santos Briz. Madrid: Editorial Revista de Derecho Privado, 1939. v. II, p. 681).

A viúva e filhos da vítima não provaram a culpa do motorista da empresa de viação, como reclama o art. 333, I, do CPC , para as situações de responsabilidade subjetiva; o rejeitar do pedido de indenização realizou justiça ao transportador benévolo, evitando que aquele ato cortês que a fatalidade turvou de drama, fosse interpretado e sancionado com rigor incompatível com a sua causa e finalidade. Afinal, não se pode favorecer demasiadamente aquele que dá carona, anistiando suas imprudências de trânsito, ainda que de natureza leve; porém, também não se poderá agravar a posição jurídica de quem presta um favor, presumindo uma culpa que não está provada para responsabilizá-lo pela morte do passageiro. Como afirmou o argentino Leonardo A. Colombo "nada és mas eqüitativo que contemplar com mejores ojos la posición jurídica de quien ha tenido el deseo de prestar un favor a um amigo o al viadante en apuros" (Culpa aquiliana. Buenos Aires: Tea, 1947. p. 689).

Nota:
1. GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade civil. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 333, item 49.6.

CLUBE DE FUTEBOL - RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DOS SÓCIOS E DIRIGENTES PELOS DÉBITOS TRABALHISTAS DOS CLUBES DE FUTEBOL QUE NÃO SE CONSTITUÍRAM EM SOCIEDADE EMPRESÁRIA

AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RECURSO DE REVISTA DO RECLAMANTE PRELIMINAR DE NULIDADE DA DECISÃO REGIONAL POR NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL - O agravante alega omissão no acórdão regional em relação à suposta ofensa aos artigos 5º, inciso X, da Constituição Federal e 302 do CPC , suscitada nos embargos de declaração interpostos. Quanto ao artigo 302 do CPC , não procede a insurgência, uma vez que, ao contrário do alegado, a invocação desse dispositivo não constou dos embargos de declaração interpostos, configurando, destarte, preclusão, nos termos da Súmula nº 184 do Tribunal Superior do Trabalho . No tocante ao artigo 5º, inciso X, da Constituição Federal , a insurgência é meramente genérica, porquanto o agravante não explicita os motivos pelos quais esse dispositivo estaria violado, o qual trata de direito à indenização por dano moral e material, matéria não discutida nesta ação. Agravo de instrumento desprovido.

COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO PARA DENEGAR SEGUIMENTO AO RECURSO DE REVISTA. O ordenamento jurídico vigente confere expressamente ao Presidente do Tribunal prolator da decisão recorrida a incumbência de decidir, em caráter prévio, sobre a admissibilidade da revista, sendo suficiente, para tanto, que aponte os fundamentos que o levaram a admitir ou a denegar seguimento ao apelo ( artigo 896, § 1º, da CLT ). Além disso, vale frisar que o Juízo de admissibilidade a quo não vincula o Juízo de admissibilidade ad quem, o qual tem ampla liberdade para, se for o caso, ultrapassar o óbice apontado pelo Regional ao processamento do recurso de revista, não havendo falar em ofensa ao duplo grau de jurisdição, cerceamento de defesa ou negativa de prestação jurisdicional. Agravo de instrumento desprovido. CLUBE DE FUTEBOL - RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DOS SÓCIOS E DIRIGENTES PELOS DÉBITOS TRABALHISTAS DOS CLUBES DE FUTEBOL QUE NÃO SE CONSTITUÍRAM EM SOCIEDADE EMPRESÁRIA - Discute-se, no caso, a responsabilidade solidária do primeiro e do segundo reclamado, sócios e dirigentes do clube de futebol reclamado, pelos créditos trabalhistas devidos ao reclamante pelo mesmo, com espeque no disposto no artigo 27 da Lei nº 9.615/98, denominada "Lei Pelé". Não obstante os argumentos recursais trazidos pelo agravante, a Lei é clara ao afirmar que os bens particulares de dirigentes dos clubes desportivos estarão sujeitos ao disposto no 50 do Código Civil, que trata da desconsideração da personalidade jurídica de entidade de direito privado, e às sanções e responsabilidades previstas no artigo 1.017 do mesmo diploma legal, na hipótese de aplicarem créditos ou bens sociais da entidade desportiva em proveito próprio ou de terceiros. Não havendo previsão expressa na Lei quanto a dívidas trabalhistas, não há como se entender por sua violação. Ademais, ao contrário do que pretende o reclamante, não se extrai do citado dispositivo legal que a responsabilidade solidária dos sócios e dirigentes decorreria, pura e simplesmente, do descumprimento da previsão inserta no § 9º do artigo 27 acima citado, que, aliás, trata da transformação das entidades desportivas profissionais em sociedade empresária como mera faculdade. Por outro lado, a responsabilidade solidária prevista no artigo 27, § 11, da Lei, somente se aplica em decorrência da prática de atos ilícitos, de gestão temerária ou atos contrários ao contrato social ou estatuto da entidade, não havendo disposição a respeito de débitos de natureza trabalhista. Quanto à alegação de que deve ser aplicado o disposto nos artigos 986,990 e 1.024 do Código Civil , em razão de se tratar de sociedade não personificada, a questão depende da demonstração de divergência jurisprudencial, não tendo logrado êxito nesse intento o reclamante, haja vista a inespecificidade do único aresto citado para o cotejo de teses, nos termos da Súmula nº 296, item I, do Tribunal Superior do Trabalho, uma vez que o julgado transcrito nem sequer examina o caso com base no disposto nesses dispositivos legais, não havendo menção nem mesmo dos termos preconizados pela Lei nº 9.615/98 . Agravo de instrumento desprovido.

RECURSO DE REVISTA DO RECLAMADO - PRELIMINAR DE NÃO CONHECIMENTO DO RECURSO DE REVISTA POR INTEMPESTIVIDADE ALEGADA PELO RECLAMANTE EM CONTRARRAZÕES - Compulsando os autos, verifica-se que, de fato, o acórdão proferido pelo Regional no julgamento dos recursos ordinários interpostos pelo reclamante e pelo terceiro reclamado, Fluminense Football Club, foi publicado no dia 25/3/2010. No dia 29/3/2010, o terceiro reclamado interpôs embargos de declaração, que, no entanto, não foram conhecidos em razão da ausência de assinatura do seu subscritor. A decisão dos embargos de declaração foi publicada no dia 22/6/2010, tendo o terceiro reclamado apresentado este recurso de revista no dia 30/6/2010, conforme foi reconhecido no despacho de admissibilidade. Salienta-se que, uma vez não conhecidos os embargos de declaração interpostos pelo terceiro reclamado, não houve a suspensão do prazo recursal, nos termos do entendimento consolidado nesta Corte. Desse modo, o recurso de revista interposto pelo reclamado é intempestivo, pois interposto fora do prazo de oito dias previsto no artigo 6º da Lei nº 5.584/70 . Acolho a preliminar suscitada em contrarrazões pelo reclamante e não conheço do recurso de revista do terceiro reclamado, diante da constatação de sua intempestividade. (TST - AIRR e RR 0042500-53.2006.5.01.0023 - Rel. Min. José Roberto Freire Pimenta - DJe 31.03.2015 - p. 4843)

AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR ATO ILÍCITO - INSCRIÇÃO INDEVIDA - DANO MORAL - PESSOA JURÍDICA - DESCONSIDERAÇÃO DA PESSOA JURÍDICA

AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL - AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR ATO ILÍCITO - INSCRIÇÃO INDEVIDA - DANO MORAL - CUMPRIMENTO DE SENTENÇA - INSOLVÊNCIA DA PESSOA JURÍDICA - DESCONSIDERAÇÃO DA PESSOA JURÍDICA - ART. 28, § 5º, DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR - POSSIBILIDADE - PRECEDENTES DO STJ - DECISÃO MONOCRÁTICA QUE DEU PROVIMENTO AO RECURSO ESPECIAL - INSURGÊNCIA DA RÉ - 1- É possível a desconsideração da personalidade jurídica da sociedade empresária - Acolhida em nosso ordenamento jurídico, excepcionalmente, no Direito do Consumidor - Bastando, para tanto, a mera prova de insolvência da pessoa jurídica para o pagamento de suas obrigações, independentemente da existência de desvio de finalidade ou de confusão patrimonial, é o suficiente para se "levantar o véu" da personalidade jurídica da sociedade empresária. Precedentes do STJ: REsp 737.000/MG, Rel. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, DJe 12/9/2011; (Resp 279.273, Rel. Ministro Ari Pargendler, Rel. p/ acórdão Ministra Nancy Andrighi, 29.3.2004; REsp 1111153/RJ, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJe de 04/02/2013; REsp 63981/SP, Rel. Min. Aldir Passarinho Júnior, Rel. p/acórdão Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, DJe de 20/11/2000. 2. "No contexto das relações de consumo, em atenção ao art. 28, § 5º, do CDC , os credores não negociais da pessoa jurídica podem ter acesso ao patrimônio dos sócios, mediante a aplicação da disregard doctrine, bastando a caracterização da dificuldade de reparação dos prejuízos sofridos em face da insolvência da sociedade empresária" (REsp 737.000/MG, Rel. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, DJe 12/9/2011). 3- Agravo regimental desprovido. (STJ - AgRg-REsp 1.106.072 - (2008/0253454-0) - 4ª T. - Rel. Min. Marco Buzzi - DJe 18.09.2014 - p. 2254)

AÇÃO PROMOVIDA POR SOCIEDADE EMPRESÁRIA - CONSUMIDOR POR EQUIPARAÇÃO - NÃO CARACTERIZAÇÃO

RECURSO ESPECIAL - AÇÃO PROMOVIDA POR SOCIEDADE EMPRESÁRIA TENDO POR PROPÓSITO RESPONSABILIZAR A INSTITUIÇÃO FINANCEIRA DEMANDADA PELOS PREJUÍZOS PERCEBIDOS EM DECORRÊNCIA DO RECEBIMENTO DE CHEQUES COMO FORMA DE PAGAMENTO, QUE, AOS SEREM APRESENTADOS/DESCONTADOS, FORAM DEVOLVIDOS PELO MOTIVO Nº 25 (CANCELAMENTO DE TALONÁRIO), CONFORME RESOLUÇÃO Nº 1.631/89 DO BANCO CENTRAL - CONSUMIDOR POR EQUIPARAÇÃO - NÃO CARACTERIZAÇÃO - CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR - INAPLICABILIDADE - DANOS QUE NÃO PODEM SER ATRIBUÍDOS DIRETAMENTE AO DEFEITO DO SERVIÇO - VERIFICAÇÃO - RECURSO ESPECIAL IMPROVIDO - 1- Não se afigura adequado imputar à instituição financeira a responsabilidade pelos prejuízos suportados por sociedade empresária que, no desenvolvimento de sua atividade empresarial, ao aceitar cheque (roubado/furtado/extraviado) apresentado por falsário/estelionatário como forma de pagamento, teve o mesmo devolvido pelo Banco, sob o Motivo nº 25 (cancelamento de talonário), conforme Resolução nº 1.631/89 do Banco Central do Brasil. 2- Afasta-se peremptoriamente a pretendida aplicação do Código de Defesa do Consumidor à espécie, a pretexto de à demandante ser atribuída a condição de consumidora por equiparação. Em se interpretando o artigo 17 do CDC , reputa-se consumidor por equiparação o terceiro, estranho à relação de consumo, que experimenta prejuízos ocasionados diretamente pelo acidente de consumo. 3- Na espécie, para além da inexistência de vulnerabilidade fática - Requisito, é certo, que boa parte da doutrina reputa irrelevante para efeito de definição de consumidor (inclusive) stricto sensu, seja pessoa física ou jurídica - , constata-se que os prejuízos alegados pela recorrente não decorrem, como desdobramento lógico e imediato, do defeito do serviço prestado pela instituição financeira aos seus clientes (roubo de talonário, quando do envio aos seus correntistas), não se podendo, pois, atribuir-lhe a qualidade de consumidor por equiparação. 4- O defeito do serviço prestado pela instituição financeira (roubo por ocasião do envio do talonário aos clientes) foi devidamente contornado mediante o cancelamento do talonário (sob o Motivo nº 25, conforme Resolução nº 1.631/89 do Banco Central), a observância das providências insertas na Resolução nº 1.682/90 do Banco Central do Brasil, regente à hipótese dos autos, e, principalmente, o não pagamento/desconto do cheque apresentado, impedindo-se, assim, que os correntistas ou terceiros a eles equiparados, sofressem prejuízos ocasionados diretamente por aquele (defeito do serviço). Desse modo, obstou-se a própria ocorrência do acidente de consumo. 5- A Lei nº 7.357/85, em seu art. 39 , parágrafo único, reputa ser indevido o pagamento/desconto de cheque falso, falsificado ou alterado, pela instituição financeira, sob pena de sua responsabilização perante o correntista (salvo a comprovação dolo ou culpa do próprio correntista). Com o mesmo norte, esta Corte de Justiça, segundo tese firmada no âmbito de recurso especial representativo da controvérsia (Recurso Especial nº 1.199.782/PR), compreende ser objetiva a responsabilidade do banco que procede ao pagamento de cheque roubado/furtado/extraviado pelos prejuízos suportados pelo correntista ou por terceiro que, a despeito de não possuir relação jurídica com a instituição financeira, sofre prejuízos de ordem material e moral, porque falsários, em seu nome, procedem à abertura de contas correntes, e, partir daí, utilizam cheques. 6- Incoerente, senão antijurídico, impor à instituição financeira, que procedeu ao cancelamento e à devolução dos cheques em consonância com as normas de regência, responda, de todo modo, agora, pelos prejuízos suportados por comerciante que, no desenvolvimento de sua atividade empresarial e com a assunção dos riscos a ela inerentes, aceita os referidos títulos como forma de pagamento. 7- A aceitação de cheques como forma de pagamento pelo comerciante não decorre de qualquer imposição legal, devendo, caso assuma o risco de recebê-lo, adotar, previamente, todas as cautelas e diligências destinadas a aferir a idoneidade do título, assim como de seu apresentante (e suposto emitente). A recorrente, no desenvolvimento de sua atividade empresarial, tal como qualquer outro empresário, detém todas as condições de aferir a idoneidade do cheque apresentado e, ao seu exclusivo alvedrio, aceitá-lo, ou não, como forma de pagamento. Na espécie, não há qualquer alegação, tampouco demonstração, de que o banco demandado foi instado pela autora para prestar informação acerca dos cheques a ela então apresentados, ou que, provocado para tanto, recusou-se a presta-la ou a concedeu de modo equivocado. 8- Recurso especial improvido. (STJ - REsp 1.324.125 - (2012/0103342-1) - 3ª T. - Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze - DJe 12.06.2015 - p. 3574)


DANO MORAL - PESSOA JURÍDICA

ADMINISTRATIVO - RECURSO ESPECIAL - RESPONSABILIDADE DO ESTADO - INTERRUPÇÃO DO FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA - MORTE DE AVES - DANO MORAL - PESSOA JURÍDICA - NECESSIDADE DE CARACTERIZAÇÃO DA PERDA DE CREDIBILIDADE NO ÂMBITO COMERCIAL - 1- A pessoa jurídica pode ser objeto de dano moral, nos termos da Súmula 227/STJ . Para isso, contudo, é necessária violação de sua honra objetiva, ou seja, de sua imagem e boa fama, sem o que não é caracterizada a suposta lesão. 2- No caso, do acórdão recorrido não se pode extrair qualquer tipo de perda à credibilidade da sociedade empresária no âmbito comercial, mas apenas circunstâncias alcançáveis pela ideia de prejuízo, dano material. Assim, descabida a fixação de dano moral na hipótese. 3- Recurso especial provido. (STJ - REsp 1.370.126 - (2013/0047525-4) - 2ª T. - Rel. Min. Og Fernandes - DJe 23.04.2015 - p. 903)



Decisão Comentada - SOCIEDADE - DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA - INSURGÊNCIA DOS SÓCIOS

"Agravo regimental em agravo de instrumento. Desconsideração da personalidade jurídica. Decisão monocrática que negou provimento ao recurso. Insurgência dos sócios. 1. É deficiente a fundamentação do recurso que, acusando omissão no acórdão recorrido, não indica os pontos sobre os quais recai o suposto vício. Incidência da Súmula nº 284/STF . 2. Esta Corte Superior entende que o dispositivo legal tido como violado deve conter carga normativa suficiente a alterar o julgado hostilizado. Na hipótese vertente, os insurgentes apontam ofensa à regra jurídica incapaz de exercer modificação no provimento jurisdicional atacado, razão pela qual o apelo extremo é deficiente, nos termos da Súmula nº 284 do STF . 3. Agravo regimental desprovido." (STJ - AgRg-AI 1.345.370 - (2010/0154815-7) - 4ª T. - Rel. Min. Marco Buzzi - DJe 20.09.2013 )

Trata-se de agravo regimental interposto contra decisão que negou provimento ao agravo (art. 544 do CPC).
O apelo nobre (art. 105, III, a, da CF/1988) desafiava acórdão prolatado em agravo de instrumento emanado do TJSP. O julgado recebeu a seguinte ementa: "Execução de sentença. Agravo contra despacho que, não encontrados bens da executada e encerradas de fato as suas atividades, deferiu pedido de despersonalização da pessoa jurídica, determinou a inclusão dos sócios no polo passivo. Providência bem decretada, nas circunstâncias. Recurso improvido."
Os recorrentes apontaram violação dos arts. 28, caput, do CDC; 50 do CC; 535, II, 592, II, e 596 e 813 do CPC.
Sustentaram o seguinte: a) o acórdão recorrido não sanou omissões apontadas; b) a desconsideração da personalidade jurídica foi realizada de forma irregular e precipitada; c) o bloqueio de ativos financeiros em contas bancárias dos recorrentes não se justifica pela assertiva de encerramento irregular da sociedade empresária, que foi presumida ante a não localização dos seus representantes, pois não há referência à desvio de finalidade da pessoa jurídica, confusão patrimonial, violação de contrato, abuso de direito, excesso de poder, infração à lei ou outra circunstância; d) não foram exauridos os meios para a localização dos recorrentes, já que existia a possibilidade da citação por edital; e) sob o título de penhora on-line, realizou-se, na verdade, arresto.
Nas razões do regimental, insistiram os agravantes na tese de que o acórdão recorrido ressente-se de omissões, porquanto não apreciou questões trazidas na defesa. Argumentaram, também, que a fundamentação do recurso especial não é deficiente, pois descabido o arresto sem a sua citação por qualquer meio e essa alegação está calcada no art. 813 do CPC.
O STJ negou provimento ao agravo regimental
O Código Civil/2002, no art. 50, assim dispõe: "Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte ou do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica."
Dessa forma, é oportuno destacarmos o ensinamento da Juíza Thereza Christina Nahas: "O instituto do disregard of legal entity, ou simplesmente, para nós, desconsideração da personalidade jurídica, tem aplicação somente para aqueles entes dotados de personalidade.
Tal instituto tem por fim a permissão de se penetrar no âmago da personalidade atribuída por concessão legislativa a um ente jurídico, permitindo que se encontre seus administradores a fim de responsabilizá-los por atos praticados através do uso da pessoa jurídica.
A pessoa jurídica continua existindo. Não se trata de anulá-la ou reconhecer-lhe a ineficácia. Ao contrário, a pessoa jurídica regularmente constituída nos termos das leis respectivas inerentes a cada tipo social, associativo ou fundacional, existe no mundo jurídico de forma válida e produz todos os efeitos de sua criação.
[...]
Despersonalizar quer dizer retirar a personalidade que lhe foi atribuída, e o que ocorre nas hipóteses aqui tratadas e, dentro do caso concreto, desconsiderar aquela atribuição inicial de personalidade para, dentro de determinados limites, atingir pessoas e bens que se encobrem atrás daquela personalidade." (Desconsideração da pessoa jurídica. São Paulo: Atlas, 2004. p. 145-146)
Fábio Ulhoa Coelho, discorrendo sobre a desconsideração da personalidade jurídica, dispõe: "Em razão do princípio da autonomia patrimonial, as sociedades empresárias podem ser utilizadas como instrumento para a realização de fraude contra os credores ou mesmo abuso de direito. Na medida em que é a sociedade o sujeito titular dos direitos e devedor das obrigações, e não os seus sócios, muitas vezes os interesses dos credores ou terceiros são indevidamente frustrados por manipulações na constituição de pessoas jurídicas, celebração dos mais variados contratos empresariais, ou mesmo realização de operações societárias, como as de incorporação, fusão, cisão. Nesses casos, alguns envolvendo elevado grau de sofisticação jurídica, a consideração da autonomia da pessoa jurídica importa a impossibilidade de correção da fraude ou do abuso. Quer dizer, em determinadas situações, ao se prestigiar o princípio da autonomia da pessoa jurídica, o ilícito perpetrado pelo sócio permanece oculto, resguardando pela licitude da conduta da sociedade empresária. Somente ser revela a irregularidade se o juiz, nessas situações (quer dizer, especificamente no julgamento do caso), não respeitar esse princípio, desconsiderá-lo. Desse modo, como pressuposto da repressão a certos tipos de ilícitos, justifica-se episodicamente a desconsideração da personalidade jurídica da sociedade empresária." (Curso de direito comercial. São Paulo: Saraiva, 2002, v. 2. p. 31)

segunda-feira, 15 de junho de 2015

Escritórios de advocacia não são sociedades empresárias, decide STJ


As sociedades de advogados são uniprofissionais e, por isso, devem ser consideradas sociedades simples, não empresárias. Portanto, a partilha de bens depois do fim da sociedade não pode levar em conta os mesmos quesitos considerados no fim de uma sociedade empresária. Foi o que decidiu a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça no último dia 26 de maio, por unanimidade. O relator é o ministro Luis Felipe Salomão.
O caso começou em São Paulo. A discussão era se a partilha de bens de um escritório, depois da morte de um sócio, podia envolver também a carteira de clientes. A sociedade era entre três advogados e o espólio pretendia que a clientela fosse dividida como numa partilha de bens de sociedade empresária.
A primeira instância deu razão ao espólio e declarou extinto o condomínio — a sociedade de advogados. O Tribunal de Justiça de São Paulo reformou a decisão por entender que “conferir a escritório de advocacia ou a sociedade de advogados o caráter de estabelecimento lucrativo é absurdo, pois depende da admissão de que eles são estabelecimentos com o objetivo de lucro”. O acórdão citou Ruy Barbosa: “Não faça da sua banca balcão”.

O acórdão do STJ concorda com a decisão do TJ-SP, mas não com a argumentação. Seguindo voto do ministro Salomão, a 4ª Turma fixou que sociedades de advogados de fato não podem ser consideradas sociedades empresárias. Mas a medida não pode ser a intenção de auferir lucro — já que toda sociedade privada pode ter fim lucrativo. Segundo o relator, o que deve definir é o “objeto social”.
No entendimento de Salomão, escritórios de advocacia são “sociedades simples”. Ou seja, são sociedades que exploram atividade econômica, objetivam lucro, mas não exploram atividades empresariais. São voltadas para questões intelectuais e costumam ser formadas por profissionais de um mesmo ofício. Em outras palavras, se destinam à prestação de serviços de advocacia, e não unicamente ao lucro.
Salomão explica que, “para que uma atividade econômica seja qualificada como empresária, a organização dos fatores de produção será elemento indispensável. E esses fatores de produção são o capital, o trabalho e todo acervo de bens necessários à execução da atividade econômica. Diz-se que são organizados, porque coordenados por seu respectivo titular, o empresário”.
E no caso das sociedades de advogados, o principal objetivo é prestar serviços de advocacia. Até porque, afirma Salomão, o Estatuto da Ordem proíbe que bancas de advogados exerçam atividades ou adotem práticas mercantis. “A sociedade simples deve se limitar ao exercício da atividade específica para a qual foi criada, relacionada à habilidade técnica e intelectual dos sócios, não podendo exercer serviços estranhos àquele mister, sob pena de configurar o elemento de empresa, capaz de transformá-la em empresária.”
O ministro explica que, no caso dos advogados, não há uma regra de organização dos fatores de produção — ou linha de produção. Por isso, não pode ser feita a partilha de bens da forma com que o espólio de um dos sócios pretendia.
De acordo com a decisão do STJ, não é possível considerar clientela e bens imóveis para fins de partilha, já que são “elementos típicos de sociedade empresária”.
REsp 1.227.240
Clique aqui para ler o acórdão.