10 de dezembro de 2020, 18h57
Por José Rodolfo
Bertolino
No presente
texto, abordaremos o princípio da pessoalidade (intranscendência), previsto no
artigo 5º, XLV, da Constituição Federal/88, em especial sua relação e aplicação
jurisprudencial a pessoas jurídicas como agentes de crime. Referida disposição
constitucional prevê que a pena aplicada não deve ultrapassar a pessoa do
agente.
Segundo Gilmar
Mendes e Paulo Gonet Branco [1]:
"A Constituição Brasileira conferiu tratamento amplo e diferenciado às questões associadas à pena e à execução penal. O inciso XLV do artigo 5º estabelece o caráter pessoal da pena, prevendo que a lei poderá dispor sobre obrigação de reparar e sobre decretação de perdimento de bens. (...) O princípio da responsabilidade pessoal fixa que a pena somente deve ser imposta ao autor da infração. O Supremo Tribunal Federal já teve a oportunidade de assentar, por exemplo que 'vulnera o princípio da incontagiabilidade da pena a decisão que permite ao condenado fazer-se substituir por terceiro estranho ao ilícito penal, na prestação de serviço à comunidade'".
Tal máxima
influenciou, de maneira direta, o estabelecimento da relação de causalidade de
um delito, prevista no artigo 13 do Código Penal, a qual dispõe que o resultado
de um crime é somente imputável a quem lhe tenha dado causa. Em outras
palavras, a responsabilidade pela prática de infrações penais deve ser
atribuída apenas àquele que tenha efetivamente praticado (seja por ato
comissivo ou omissivo) a conduta, ou ainda que tenha eventualmente concorrido
para a sua prática.
Pois bem.
Estabelecido minimamente o conceito de relação de causalidade entre a conduta
praticada e a pessoa do agente, avança-se para o tema central do presente
texto: a extinção da punibilidade atribuída ao agente, em especial, de pessoas
jurídicas.
Nos dizeres de
Cezar Roberto Bitencourt [2], a pena não é o elemento do crime, mas, sim,
consequência natural da prática de uma ação típica, antijurídica e culpável.
Todavia, existem situações que obstam a aplicação e/ou a execução da reprimenda
estabelecida para a conduta praticada. Em tais hipóteses, opera-se a extinção
não do delito em si, mas, sim, do direito estatal de punir a infração cometida
pelo agente.
O artigo 107 do
Código Penal, em seus incisos de I a IX, dispõe todas as situações em que se
deve operar a extinção da punibilidade, ficando o agente livre do cumprimento
de qualquer tipo de medida. Aqui, destaca-se que "agente" se refere
tanto à pessoa física quanto à pessoa jurídica (relembrando, claro, que a
atribuição de responsabilidade criminal a entes morais é permitida apenas em
questões relacionadas a crimes ambientais — artigo 225, §3º, CF/88).
Quando tratamos
de uma pessoa física, a situação é simples, uma vez que o ciclo de vida de um
indivíduo é conhecido por todos: 1) nascimento; 1) crescimento; 3)
envelhecimento; e 4) morte. No entanto, e com relação a entes não naturais?
Como se comprova a "morte" de uma pessoa jurídica?
Para obtenção da
resposta, é necessário tecer breves comentários sobre referidos entes morais. A
legislação brasileira não fornece uma definição específica sobre empresa, mas,
sim, sobre o empresário (artigo 966, do Código Civil). Em termos leigos (não legais),
empresa se resume a uma espécie de sistema econômico criado para oferecer à
sociedade determinado produto e serviço. Sua "vida" é iniciada a
partir de sua inscrição (CNPJ e inscrições estaduais) perante os órgãos
estaduais competentes e registro de seus atos constitutivos (artigo 985, do
Código Civil). Ora, se considerarmos que a vida está diretamente relacionada ao
CNPJ, pode-se entender por a "morte" da pessoa jurídica quando se
opera o cancelamento de sua identidade/inscrição no cadastro nacional e
consequente perda de personalidade jurídica.
De acordo com o
ordenamento jurídico brasileiro (Código Civil e Lei das Sociedades Anônimas
[3]), tal situação pode ocorrer nas hipóteses de incorporação — absorção de uma
ou mais sociedades por outra —, fusão — união de duas ou mais sociedades para
formação de uma terceira — e cisão — transferência de patrimônio para
sociedades já existentes ou constituídas apenas para este fim.
O entendimento
está, inclusive, consolidado na jurisprudência dos tribunais [4], representado
abaixo por um julgado do Superior Tribunal de Justiça. Vejamos:
"Processual civil. Incorporação. Sucessão processual. Agravo regimental interposto por terceiro (incorporador). Sociedade recorrida (incorporada) extinta. Demonstração posterior ao ato de interposição. Inteligência da súmula nº 115 do STJ, aplicada por analogia. Conforme disciplina a Lei nº 6.404, de 15/12/1976 (Lei das Sociedades por Ações), a incorporação — operação pela qual uma ou mais sociedades são absorvidas por outra — enseja a extinção da personalidade jurídica da sociedade incorporada, equiparando-se, para efeitos legais, à morte da pessoa física ou natural. (...) 4. Agravo regimental não provido" (STJ — 2ª T. — AgRg no REsp 89.557/RS — relator ministro Mauro Campbell Marques — DJe 27/10/2010).
Pois bem.
Fixadas as hipóteses de "morte" da pessoa jurídica, passa-se a
entender se (e como) referida situação jurídica pode ser interpretada quando relacionada
ao Direito Penal. A situação é peculiar, controversa e vem ganhando espaço nos
tribunais brasileiros.
Há quem diga
que, por conta da possibilidade de sucessão de obrigações entre sociedades
incorporadas, cindidas ou que foram objeto de fusão, é possível que a
responsabilidade criminal também seja transmitida, logo, não haveria óbice ter
como iniciada uma persecução penal contra uma pessoa jurídica que já "não
existe mais". Tal situação, com a devida vênia, está equivocada, uma vez que,
de acordo com o princípio da pessoalidade (ou instranscendência), a reprimenda
penal jamais ultrapassará o limite da pessoa do agente (artigo 5º, XLV, CF/88),
sendo vedada, de maneira expressa, a transposição/transferência de penas e de
responsabilidade penal.
Ou seja,
terceiros estranhos à empreitada criminosa não podem, em hipótese alguma, serem
responsabilizados e objeto de punição pelo Direito Penal.
E não é só. Em
se tratando de Direito Penal, deve-se observar o princípio da estrita
legalidade, o qual obsta a utilização de analogia jurídica para criação de
tipos penais incriminadores e/ou em malefício ao réu/acusado. Em outras
palavras, se não existe dispositivo legal que permita a transferência de
responsabilidade penal em casos de operações societárias (o que não existe em
nosso ordenamento jurídico), tal hipótese jamais deve ocorrer.
O raciocínio
contrário, no entanto, é permitido. Vejamos.
A Lei 9.605/98,
que trata especificamente de delitos cometidos contra o meio-ambiente e da
possibilidade de responsabilização criminal de pessoas jurídicas, é silente no
tocante ao reconhecimento da extinção da punibilidade de agentes de crimes
ambientais em razão da "morte" do agente. Tal situação nos leva
diretamente a uma disposição geral de referida lei (artigo 79), a qual
determina que, na ausência de normas legais específicas, aplicam-se
subsidiariamente, por extensão, as normas previstas nos Códigos Penal e de
Processo Penal.
Dessa forma, por
analogia arrimada no artigo 107, I, do Código Penal, o qual prevê a extinção da
punibilidade em razão da morte do agente, nos parece extremamente possível o
reconhecimento quando se trata de agente pessoa jurídica, sobretudo em razão da
extinção de sua personalidade jurídica.
O Superior
Tribunal de Justiça já se deparou com o tema (HC 283.807) e determinou a
aplicação, por analogia, de referido dispositivo legal em situação em que se
operou a extinção da personalidade jurídica de um ente moral, determinando o
reconhecimento da extinção da punibilidade em razão da morte do agente:
"2. Preliminares 2.1. Da extinção da punibilidade em relação a pessoa jurídica. A despeito das várias preliminares suscitadas pela Iron Construtora e Incorporadora Ltda. e seu representante nas contrarrazões de fls. 408/453, constata-se que a empresa foi extinta por força de liquidação voluntária, inclusive com baixa de seu CNPJ, com se confere de fls. 458/459. Nessa hipótese, aplica-se analogicamente o artigo 107, I, do CP, para declarar a extinção da punibilidade, mesmo porque, como bem frisou o MPF às fls. 471/472, uma das consequências que lhe seria imposta diante de eventual condenação seria exatamente sua liquidação forçada, a teor do artigo 24 da Lei nº 9.605/98, valendo frisar que o MPF direcionou acusação também contra aqueles a quem reputa os verdadeiros dirigentes da empresa, sem prejuízo da apuração de responsabilidade, a princípio. Portanto, declaro extinta a punibilidade da denunciada Iron Construtora e Incorporadora Ltda.".
O Tribunal de
Justiça do Paraná, recentemente, concedeu liminar, em sede de mandado de
segurança [5], determinando a suspensão de ação penal intentada contra pessoa
jurídica com base justamente na possibilidade de reconhecimento da aplicação do
artigo 107, I.
O caso, que
versa sobre a suposta prática do delito de poluição qualificada (artigo 54,
§2º) por empresa incorporada por um grupo empresarial, tramita perante a
comarca de Arapongas (PR), cuja materialidade delitiva, de acordo com o
Ministério Público Estadual, restaria comprovada por fotografias. À época, a
denúncia foi oferecida apenas contra a pessoa jurídica, não tendo a conduta
sido imputada a nenhum dos sócios então responsáveis pela empresa.
Em sua decisão,
o desembargador José Maurício Pinto de Almeida pontuou que a perda da
personalidade jurídica em razão da empresa ré ter sido incorporada altera sua
capacidade e possibilidade de estar em juízo, de modo que não seria possível o
exercício de qualquer pretensão penal contra referida empresa:
"Sob o aspecto da extinção da pessoa jurídica, a empresa ora incorporada (Agrícola Jandelle S.A.) perde a sua capacidade de estar em Juízo como polo passível de punição, inviabilizando-se o exercício de qualquer pretensão penal dirigida em desfavor daquela, obstando-se a punição da incorporadora (Seara Alimentos Ltda.) em face do princípio da intranscendência. Consigne-se que, em tese, se está extinta a pessoa jurídica (CNPJ 74.101.569/0008-56), há um fim — uma baixa —, e, com este fim, poderia entender-se que, por analogia, ocorreu a morte do denunciado, ocorrendo a extinção da punibilidade nos termos do artigo 107, inciso I, do CP. (...) Todavia, não obstante o supra relatado, determino, ao momento, e por cautela, tão somente a suspensão do trâmite do processo criminal nº 0000031-44.2012.8.16.0045 até o julgamento do mérito deste mandamus".
O entendimento
do TJ-PR contrariou argumento levantado pelo Ministério Público Estadual de
primeira instância, o qual alegou que a garantia constitucional levantada no caso
(princípio da intranscendência) estaria sendo utilizada apenas para que a
empresa denunciada se furtasse de eventual responsabilização criminal.
A decisão do
eminente desembargador soa extremamente acertada, uma vez que, com base no
exposto acima, é plenamente plausível reconhecer-se a extinção da punibilidade
de um agente pessoa jurídica em razão de sua morte com base em interpretação
analógica do artigo 107, I, do Código Penal. Além disso, não há que se falar,
em hipótese alguma, em manobra evasiva, uma vez que a garantia está prevista no
rol de princípios e garantias fundamentais da CF/88, pedra angular de um Estado
democrático de Direito, e à defesa cabe a utilização de qualquer argumento que
beneficie os interesses de seus clientes.
Não se pode olvidar
também que, além da garantia constitucional que veda a transferência de
responsabilidade, em se tratando de matéria penal, não se permite a incidência
de obrigação propter rem, uma vez que, para fins de responsabilização e
aplicação de eventual sanção, o elemento subjetivo da conduta ilícita praticada
deveria ser demonstrado de maneira clara, e não presumido em razão de uma
aquisição societária.
A
Procuradoria-Geral de Justiça, ao se pronunciar em referidos autos,
manifestou-se totalmente favorável à concessão da segurança e do reconhecimento
da extinção da punibilidade da pessoa jurídica em questão. Referida
manifestação ministerial, apoiada em julgado exarado pelo Superior Tribunal de
Justiça (Resp 1.251.697/PR), além de destacar que o princípio da
intranscendência deve ser plenamente aplicado não apenas ao Direito Penal, mas
também a todo e qualquer direito sancionador, pontuou, conforme destacado
acima, a não incidência de obrigação propter rem no Direito Penal:
"Dito isto, pondero que no presente caso não se cogita de reconhecimento de trancamento de ação penal por inépcia da denúncia ou por ausência de justa causa, como aliás bem decidido no deferimento da liminar e exposto na contestação da Promotoria de Justiça (que adoto, neste aspecto, como fundamento deste parecer), porém merece redobrada atenção a questão que envolve a sucessão de empresas (...).
No âmbito civil já é pacífico que a obrigação de reparar dano ambiental é propter rem, aliás, neste último caso a Súmula 623, do Superior Tribunal de Justiça é clara ao dispor que: 'As obrigações ambientais possuem natureza propter rem, sendo admissível cobrá-las do proprietário ou possuidor atual e/ou dos anteriores, à escolha do credor'.
Por outro lado, no nosso ordenamento jurídico não se cogita de uma responsabilização administrativa e sobretudo criminal sob o pretexto de que a obrigação de reparar tem natureza propter rem, como querem o Juízo a quo e a Promotoria de Justiça".
Ou seja, em se
tratando de Direito Penal, não é permitida sucessão corporativa, situação em
que ocorre a transferência de passivos e ativos.
No julgamento de
mérito, ocorrido neste dia 10 de dezembro, e conduzido pela 2ª Câmara Criminal
do Tribunal de Justiça do Paraná, foi determinado, por votação unânime, o
trancamento de referida ação penal. O entendimento firmado pela turma julgadora
fui justamente pelo reconhecimento da extinção da punibilidade (pela morte do
agente) em razão da extinção da pessoa jurídica acusada.
Segundo a turma
julgadora, haveria óbice no reconhecimento da modalidade de extinção em
situações em que fosse possível a comprovação de que determinada operação
societária teria como único objetivo burlar eventual responsabilização
criminal, o que não ocorreu no caso julgado.
Assim, conforme
já dito acima, o tema ainda é controverso, e certamente ganhará cada vez mais
espaço nos tribunais brasileiros, nos restando apenas aguardar e torcer para
que as discussões sejam ricas em argumentos e que o entendimento seja cada vez
mais consolidado.
[1] Mendes, Gilmar
Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 14 ed. — São Paulo: Saraiva Educação
2019.
[2] Bitencourt, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte geral 1. 21 ed — São Paulo: Saraiva, 2015: p. 881.
[3] Artigo 227 a 229 da Lei 6.404/76 e artigo 1116 a 1122 do Código Civil.
[4] No mesmo sentido: TJ-SC Apelação Cível 0014854-54.2008.8.24.008, TRF 3 Apelação Cível 0011383-17.2013.4.03.6105, TJSC Apelação Cível 0000182-71.2013.8.24.0006.
[5] TJ-PR Mandado de Segurança nº 0038170-25.2020.8.16.0000.
José Rodolfo Bertolino é advogado, especialista em Direito Penal Econômico pela Fundação Getúlio Vargas e integrante do departamento jurídico da empresa JBS S.A..
Nenhum comentário:
Postar um comentário