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segunda-feira, 12 de outubro de 2015

A metadogmática do Direito Comercial brasileiro (parte 1)

 

É com grande satisfação que, em atenção ao honroso convite do professor Otávio Luiz Rodrigues Jr., contribuímos para esta prestigiosa coluna, mantida pela Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo.

A metadogmática transcende a dogmática[1] na sua objetividade, referindo-se, contudo, a categorias e conceitos dogmáticos. O termo é empregado, no contexto de uma metódica (teoria do método), para designar um produto da interpretação (possivelmente para fins de atualização do direito), que expresse uma visão externa do fenômeno jurídico, às vezes voltada à aplicação da norma, mas sempre dedicada a uma reflexão que confronta fatores exógenos aos dogmáticos.[2] Qualquer rearranjo programático (do âmbito, das funções ou das técnicas) de uma disciplina jurídica, que produza um resultado dogmático, pressupõe um diálogo entre política do direito e dogmática, que é próprio da metadogmática.

Uma metadogmática do direito comercial propõe, por exemplo, à porção da ciência objetiva do direito que caracteriza o direito comercial, um objeto, funções e técnicas, sem dizer a norma em seu conteúdo objetivo (mesmo que da proposta decorra um conteúdo).

Este artigo, dividido em quatro partes, expressa, nos itens II a IV, proposições próprias do discurso metadogmático, quer prestar alguma contribuição ao debate atual sobre o conteúdo do direito comercial, na medida em que as conclusões aqui expressas o antecedem, capazes, bem por isso, de inculcar impressões acerca dos seus caminhos.

O que é e para que serve o direito comercial
 
1. O direito comercial é o “direito privado externo da empresa”.[3] Não é, bem por isso, o estatuto jurídico da empresa, ainda que na empresa se funde o seu objeto. O direito comercial disciplina parte do fenômeno empresarial, que se secionou, para fins de regramento, por expurgos ideológicos e pela afirmação histórica de especialidades.

O regramento da empresa, que se refere a um direito interno (organização) e a um direito externo (exercício) da empresa, não é disciplina autônoma, mesmo que a empresa se converta crescentemente em uma categoria jurídica de grande força atrativa. Do seu regramento já se ocupam o direito comercial, o direito societário, e porções de outras ramas, a exemplo do direito econômico, do direito do consumo e do direito do trabalho.

2. A empresa, que corresponde – em quaisquer hipóteses conceituais – a uma fattispecie amplíssima, foi concebida, sob o espírito da regulação total[4], para desbordar os limites de um claudicante embate histórico-programático[5]; revolucionou a matriz regulatória do direito comercial, por meio da superação das velhas doutrinas objetivista e subjetivista, mas, sobretudo, por uma drástica restrição, combinada com paradoxal e majoritária contenção da autonomia privada.[6] A empresa é, nesse sentido, uma poderosa técnica de intervenção estatal na economia. A sua disciplina determina, paradoxalmente, as maiores restrições à autonomia privada e, ao mesmo tempo, boa parte do âmbito da autonomia privada.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Lisboa, Girona, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC e UFMT).


[1] “A ciência do direito em sentido estrito, a ciência dogmática e sistemática do direito (Jurisprudência), é a ciência do sentido objetivo do direito positivo [...] É a ciência do sentido objetivo do direito positivo, nisto se distinguindo, sucessivamente: da História do direito, da Ciência comparativa do direito, da Sociologia e da Psicologia jurídicas as quais têm por objecto o ser do direito e os factos da vida jurídica”. Cf. Radbruch, G. A Filosofia do Direito. Coimbra: Armênio Armando, 1997, p. 395.

[2] Cf. SCHULZE-FIELIZ, H. “Das Bundesverfassungsgericht in der Krise des Zeitgeists – Zur Metadogmatik der Verfassungsinterpretation.” Archiv des Öffentlichen Rechts, Vol. 222, 1997, pp. 1-31.

[3] Essa assertiva caracteriza a chamada Neokonzeption des Handelsrechts. É compatível com o nosso modelo, porque atribui à empresa – a exemplo do que já se dá em nosso ordenamento – a condição de categoria jurídica estruturante do direito comercial alemão (mesmo que, naquele país, ainda não a tenham positivado). Isso se reforça pelos sucessivos expurgos que apartaram do nosso direito comercial a disciplina de porções significativas do fenômeno empresarial. Para uma descrição pormenorizada dessa noção, cf. SCHMIDT, K. Handelsrecht. 5. Aufl., Köln, Berlin, Bonn, München: Heymann, 1999, §3.

[4] Regulação total. A empresa é, em primeiro lugar, uma técnica regulatória. Decorre do desejo de engendrar um regramento de toda a atividade econômica, na certeza de que sua importância exorbita o espaço privado (i.e., o âmbito da autoconfiguração (Selbstgestaltung) das relações jurídicas por particulares), à produção de efeitos que interessam o público e que, por isso, devem ser – sob um modelo de economia normativa – submetidos pela ordem jurídica total. A ideia de um “direito da atividade econômica” se torna plausível na Alemanha de Weimar, em meio a uma forte degradação da economia e em resposta às suas causas precípuas, invariavelmente associadas ao oportunismo dos agentes de mercado e à ampla liberdade de que se beneficiavam. Cf. Hedemann, J. W.  
Deutsches Wirtschaftsrecht: Ein Grundriess. Berlin: Junker & Dünnhaupt, 1939. Nesse contexto, a empresa, que já era objeto de especulação doutrinária, afirmou-se como conveniente técnica de intervenção do Estado na economia.

[nota 4-I] Origens. O pensamento jurídico de tradição germânica já trabalhava, nos meados do século XIX, uma noção de empresa, sem se dar conta da amplitude e da importância de seu emprego futuro. A Geschäft, como propôs Endemann, era um organismo – afetado pelo lucro – para transcender os seus criadores. Cf. ENDEMANN, W. Das Deutsche Handelsrecht. Systematisch dargestellt. 2. Aufl. Heidelberg, 1868. § 15, p. 76 et seq. Autores como Hedemann, articulando essa forte orientação subjetivista ao interesse de dispor de uma técnica regulatória de amplíssimo espectro, propuseram que a empresa substituísse a pessoa jurídica. Cf. HEDEMANN, J. W. Das bürgerliche Recht und die neue Zeit, 1919, p. 17. Seria, todavia, na condição de objeto unitário de negócios, sob a influência de Von Ohmeyer, Pisko e Isay, que a empresa permitiria, mais tarde, um maior avanço dogmático. Cf. OHMEYER, K. E. von. Das Unternehmen als Rechtsobjekt. Mit einer systematischen Darstellung der Spruchpraxis betreffend die Exekution auf Unternehmen. Wien: Manz, 1906. p. 8 et seq; PISKO, O. Das Unternehmen als Gegenstand des Rechtsverkers. Wien: Manz, 1907. p. 46 et seq.; ISAY, R. Das Recht am Unternehmen. Berlin: Vahlen, 1910. p. 12 et seq.

[nota 4-II] Polissemia e variância tônica: do perfil subjetivo ao núcleo defletor de interesses. É certo, como nos dá conta Asquini, que na virada do século e ainda nas duas primeiras décadas do século XX, prevalecia, entre os muitos sentidos de empresa, um perfil subjetivo, sob a forte influência dos pais do Direito Econômico. Cf. Asquini, A. Profili dell’ Impresa. Rivista del Diritto Commerciale e del Diritto Generale delle Obbligazioni, Milano: Francesco Vallardi, v. 41, pt. 1, 1943. O perfil prevalentemente subjetivo, que se deflagrava pela intenção originária de suplantar a pessoa jurídica, sofreria ajustes, até que o conceito de empresa evoluísse em complexidade, permeado por influxos ideológicos e por interesses públicos, afirmando-se, ao fim, já nos anos 1940, um traço funcional mais acentuado, que se sente na conjunção das ideias de organização, afetação (função) e atividade. Note-se, para explicar esse ajuste conceitual, que as mais adiantadas reflexões sobre a empresa iriam tratá-la, a partir dos anos 1930 e especialmente no auge do regime nacional-socialista, como especial núcleo defletor de interesses; assumiria a tarefa de introduzir importantes influxos ideológicos no ordenamento, a exemplo do que se tentou por meio da doutrina do Unternehmen an sich. Cf. Rathenau, W. Vom Aktienwesen: Eine Geschäftlische Betrachtung g. Berlin: Fischer Verlag, 1917; NETTER, O. “Zur aktienrechtlichen Theorie des ‘Unternehmens an sich’”. JWI, p. 2953-2956, 1927; “Gesellschaftsinteresse und Interessenpolitik in der Aktiengesellschaft”. Bank-Archiv, v. 30, 1930-1931, p. 57-65 e 86-95. Para uma visão histórica desse processo, mesmo que algo distorcida, JAEGER, P. G. L’interesse sociale. Milano: Giuffrè, 1964. p. 17 et seq. E superado, com a queda do Reich, um tom demasiado publicista (que inspirou, em 1937, as reformas da Aktiengesetz), à empresa remanesceria o sentido de centro de interesses ou de valores distintos daqueles dos seus suportes humanos, à afirmação de um Unternehmensinteresse, instruído por clamores de uma variada gama de “grupos de pressão” e, antes deles, por interesses de Estado (cf., nesse sentido, todas as leis que introduziram a participação operária nos órgãos de direção da macroempresa societária alemã, i.e., a Gesetz über die Mitbestimmung der Arbeitnehmer in die Aufsichtsraten und Vorstanden der Unternehmen des Berghaus und der Eisen und Stahl erzeugende Industrie (MontaMitbestG 1951), a Betriebsverfassungsgesetz de 1952 e a gesetz über die Mitbestimmung der Arbeitnehmer (MitbestG) de 1976). Deve-se lembrar, contudo, que, curiosamente, a empresa não é uma categoria jurisdicizada pelo direito alemão atual, para o qual o direito comercial ainda é o direito das “pessoas do comércio” (Recht der Kaufleute). Cf. HOFMANN, P. Handelsrecht, 11. Aufl., Berlin: Luchterhand, 2002, ROTH, G.H. Handels- und Gesellschaftsrecht, 6. Aufl., München: Vahlen, 2001, §1, 1c. Daí por que à concepção tradicional se opõe uma Neokonzeption des Handelsrechts. Cf. SCHMIDT, K. Handelsrecht..., op. cit., §3. Para um conceito de empresa influente na Alemanha atual, cf. RAISCH, P. Geschichliche Voraussetzungen, dogmatische Grundlagen und Sinnwandlung des Handeslrechts, Karlsruhe: C. F. Müller, 1965, p. 119 et seq.

[nota 4-III] A difusão da empresa como técnica regulatória e a empresa no Brasil. Essas ideias influenciariam, alicerçadas em modelo de Estado, um grande número de ordenamentos nacionais. A Itália de Mussolini, em vista de sua proximidade com a Alemanha nazista, atribuiu à empresa a condição de conceito estruturante para a matriz regulatória que se deduz do Codice Civile de 1942. Outros países, em meio a um projeto de ampliação do Estado, também encontraram na empresa uma conveniente ferramenta. Célebres comercialistas, a exemplo de Frederiq e VanRyn, cogitaram mesmo uma absorção do direito comercial pelo direito econômico, senão a sua completa superação, pelo advento de uma nova disciplina centrada na empresa como categoria fundamental. Cf. Frederiq, L. Traité de Droit Commercial Belge. V. 1, Gand: Rombaut-Fecheyr, 1946, p. 22; VanRyn, J. Principes de Droit Commercial. Bruxelles: Bruylant, 1954, p. 12. Bem por isso, no direito francês, também, a empresa exerce, até hoje, papel fundamental. Cf. Georges. Traité Élémentaire de Droit Commercial. 2. éd. Paris: LGDJ, 1951, p. 6 et seq. Nisso tudo, em especial no direito italiano, inspirou-se o nosso Código Civil, onde a norma do artigo 966, assim como a do artigo 2.082 do Codice Civile, não conceitua a empresa, senão por meio da definição de empresário. Entre nós, a empresa, para além de todas as funções regulatórias já referidas, proveu, em meio à suposta unificação do direito privado, uma especialização mínima, indispensável à distinção de fenômenos econômicos e de sua disciplina jurídica. A empresa é a atividade econômica, que decorre da organização e do emprego de elementos de produção, pelo empresário (individual ou sociedade empresária), em caráter profissional, para a produção ou à circulação de bens e de serviços, nos mercados. A ideia de afetação empresarial serve para distinguir, nesse contexto, como se disse, de todos os demais, os fenômenos econômicos sujeitos a um regramento particular. Cf. Broseta Pont, M. La Empresa, la Unificacion del Derecho de Obligaciones y el Derecho Mercantil. Madrid: Editorial Tecnos, 1965.

[5] A jurisdicização da empresa e o seu emprego como técnica regulatória ofertavam, para além de ampla cobertura da atividade econômica, um providencial efeito reflexo, capaz de superar a controvérsia original entre as concepções subjetiva e objetiva. A vertente subjetivista, mais antiga e de inspiração corporativa, tinha no direito comercial uma disciplina jurídica de classe profissional. Cf. Bracco, R. L’Impresa nel Sistema del Diritto Commerciale. Padova: CEDAM, 1960, p. 26 et seq. O objetivismo, defendido por autores do século XIX, restringia a atuação do direito comercial ao regramento dos atos de comércio. Sobre o processo de “objetivação” e expansão do direito comercial, intrinsecamente relacionado com a Revolução Industrial e a produção em massa, cf. Ascarelli, T. Iniciación al Estudio del Derecho Mercantil. Barcelona: Bosch, 1964, p. 101. A noção de ato de comércio, de um lado, seria – no contexto da empresa – absorvida pela ideia de atividade e, de outro lado, o foco das atenções deixaria de ser a conduta do comerciante, substituído pelo empresário. Em verdade, foi a natureza multifária e polissêmica da empresa que pacificou a antiga disputa pelo objeto do direito comercial (não sem ensejar, como veremos, novas controvérsias); a amplitude e plasticidade conceitual da empresa abrangeu todos os objetos programáticos até então atribuídos ao direito comercial. É certo que a transposição de tonicidade de um perfil a outro, especialmente a pendularidade subjetivo-funcional, proveria argumentos para acusações de uma superação putativa das velhas concepções subjetiva e objetiva. Cf. Fanelli, G. Introduzione alla Teoria Giuridica dell’Impresa. Milano: Giuffrè, 1950.

[6] Não sem razões, Asquini, já nos anos 1940, lecionava sobre um hibridismo público-privado do regramento da empresa. Cf. ASQuini, A. “Una Svolta Storica nel Diritto Commerciale”. Rivista del Diritto Commerciale e del Diritto Generale delle Obbligazioni, Milano: Francesco Vallardi, v. 38, pt. 1, 1940, p. 514. 

Walfrido Jorge Warde Jr é advogado, bacharel em Direito pela USP e em filosofia pela FFLCH-USP, LLM pela New York University School of Law e doutor em Direito Comercial pela USP

Jose Luiz Bayeux Neto é advogado, bacharel e mestre em Direito Civil pela USP e professor de Direito Comercial do Mackenzie