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sábado, 17 de novembro de 2018

Um caso de amor e complice

Um caso de amor e compliance

Heloisa Carpena Heloisa Carpena

Em junho de 2018, a Intel, conhecida fabricante de processadores e um dos gigantes do Vale do Silício, anunciou a renúncia de seu CEO Brian Krzanich, por violação ao código de conduta da empresa [1]. Segundo foi apurado em investigação interna, Mr. Krzanich manteve relacionamento amoroso (e consensual) com uma colaboradora, fato que chegou ao conhecimento do conselho da empresa anos depois e foi caracterizado como violação ao código de conduta da companhia e à sua política de não-confraternização (non-fraternization policy).

O episódio atraiu a atenção do mercado e deixou apreensivos seus investidores, pois o executivo, que ingressara na Intel em 1982 e se tornou presidente executivo em 2013, havia conduzido a bem-sucedida estratégia da empresa, diversificando suas atividades para além dos microprocessadores, o que elevou o preço das ações em 120% durante sua gestão. Após o anúncio da saída do executivo, as ações da Intel subiram 2,1% [2] .

O fato não é inédito, mas impressiona porque a decisão, pelo menos na aparência, se opõe a uma estratégia de negócios orientada por resultados e, justamente por isso, demonstra a forte adesão da direção à política interna da empresa

Os programas de compliance se estruturam sobre vários pilares e o apoio da alta direção (tone at the top) certamente é o mais importante deles. A máxima “o exemplo vem de cima” se concretiza na exigência de que os dirigentes das empresas (C-level) estejam de fato comprometidos não apenas com o estrito cumprimento das normas legais e regulamentares, mas sobretudo com a implementação das regras internas, estabelecidas de forma voluntária a partir dos valores expressos nos códigos de ética. Os programas serão mais efetivos quanto maior for a adesão dos colaboradores, diretamente estimulada pelo apoio da alta direção.

A lei brasileira contempla este pilar como um dos requisitos da efetividade dos programas. O Decreto n. 8.420/15, que regulamentou a Lei da Empresa Limpa (Lei n. 12.846/13), quando trata da avaliação da “existência e aplicação” dos programas de integridade (art. 42), exige o “comprometimento da alta direção da pessoa jurídica, incluídos os conselhos, evidenciado pelo apoio visível e inequívoco ao programa”. Note-se que o tone at the top está previsto no inciso I da norma, a denotar a prioridade atribuída pelo legislador a este atributo do programa. A nível estadual, a Lei n. 7.753/17, que instituiu a obrigatoriedade da adoção do programa de integridade pelos contratantes com o Estado do Rio de Janeiro, igualmente se refere a este requisito no art. 4º, I.

A nível administrativo, também se identificam sinais da importância do comprometimento dos executivos e conselhos para o sucesso do programa de compliance. Em 2010, a Controladoria Geral da União criou o Cadastro Empresa Pró Ética, que “consiste na divulgação anual de uma relação de empresas que adotam voluntariamente medidas de integridade relacionadas à prevenção e ao combate à corrupção” [3]. A seleção é anual e tem sido rigorosa, em sua última edição, das 375 empresas inscritas, apenas 23 foram aprovadas e receberam o selo Pró Ética.

Após uma fase de análise de requisitos de admissibilidade, as candidatas devem responder a um questionário de avaliação, dividido em 6 áreas, que são: Comprometimento da Alta Direção e Compromisso com a Ética; Políticas e Procedimentos; Comunicação e Treinamento; Canais de Denúncia e Remediação; Análise de Risco e Monitoramento e Transparência e Responsabilidade Social. Serão consideradas habilitadas as empresas que totalizarem 70 pontos, dos quais 20 podem ser alcançados somente com a comprovação do “tone at the top”. Para atender a esse requisito, a empresa deve provar com evidências “de que maneira a alta direção demonstra, tanto interna como externamente, seu comprometimento com a ética e a integridade, incluindo a prevenção e o combate à corrupção e à fraude em licitações e contratos” (questão n. 1/avaliação 2017). O desafio é identificar como isso pode ser demonstrado.

A participação dos executivos nos treinamentos, suas comunicações dirigidas aos colaboradores reafirmando políticas e valores da empresa, assim como a inclusão do tema da ética nas pautas de reuniões de diretoria e conselho são exemplos de práticas e que podem ser facilmente comprováveis. Todavia, embora sejam recomendadas inclusive em diretrizes da Controladoria Geral da União, tais medidas podem não ser suficientes para que o comprometimento se realize de forma efetiva. O relato de ações concretas praticadas pelos gestores na apuração e na repressão a condutas violadoras das leis e dos valores da empresa é fundamental para comprovar o atendimento do requisito e servir de base para a “criação de uma cultura organizacional” [4].

O compliance, como parte da governança empresarial, se insere na cultura da organização e, portanto, deve ser pautado pelas suas peculiaridades, objetivos, práticas, crenças e valores. Cada um dos pilares do programa deve contemplar uma abertura a essa realidade, que é própria de cada empresa e, portanto, única. Há que se considerar, por exemplo, o grau de proximidade entre a direção e os colaboradores, que será inversamente proporcional ao tamanho da empresa e à dispersão de suas atividades, parâmetros que devem conduzir a forma e a intensidade da comunicação entre as diferentes instâncias de poder. Em qualquer estrutura empresarial, seja grande ou modesto o faturamento, com muitos ou poucos colaboradores, atuando em âmbito local ou global, a alta direção será sempre um modelo de conduta, do ponto de vista da ética.

A liderança pelo exemplo é o ponto de partida para toda e qualquer mudança que se pretenda implantar e, em regra, será capaz de promovê-la aquele que tiver o poder de decidir sobre as estratégias de negócios, assegurar recursos para o eficaz funcionamento do programa, garantir o cumprimento da política de não retaliação aos denunciantes, aplicar sanções aos infratores e celebrar acordos com autoridades públicas para a devida conformidade das práticas empresariais. Em suma, são os gestores que asseguram a confiabilidade do programa de compliance.

A alta administração deve se comportar de forma ética mesmo nas decisões sigilosas ou reservadas, e somente assim promoverá os valores da organização, encorajando as pessoas a expressarem suas preocupações, estando sempre pronto a ouvi-los, sem retaliação, assegurando que, seja quem for, será responsabilizado por atos que descumpram as normas internas e externas que regem a atividade da empresa.

O compliance, na sua dimensão de integridade, vem sendo difundido no país por leis federais e estaduais que concedem benefícios às empresas que o adotam, condicionados à demonstração de que buscam torná-lo efetivo, isto é, apto a produzir o desejado efeito de reduzir os atos de corrupção. Na dimensão concorrencial, encontra-se a expressa advertência sobre programas “de fachada”, assim definidos no Guia do Compliance publicado pelo CADE como aqueles “criados apenas para simular um interesse em comprometimento, também conhecidos como sham programs.” [5]

A lei não deixa dúvidas de que a comprovação dos efeitos do programa de integridade é indispensável à atribuição dos benefícios decorrentes do acordo de leniência, tanto assim que se refere à “aplicação efetiva de código de ética e de conduta” como condição para a celebração (art. 16 da Lei n. 12.846/13). Destaque-se que a norma legal expressamente prevê que o acordo “somente poderá ser celebrado” se e quando ficar comprovada a efetividade do programa. Vale lembrar que o descumprimento do acordo ensejará, além do impedimento de nova celebração pelo prazo de 3 anos, o restabelecimento da multa imposta de forma integral, o que torna a efetividade do programa verdadeira condição resolutiva do compromisso.

Ainda que as consequências do romance de Mr. Krzanich possam ser consideradas desproporcionais, do ponto de vista de nossa cultura latina, certamente demonstram a importância do pilar número 1 que todo programa de compliance deve possuir e comprovam, de forma inequívoca, o compromisso da administração superior, no caso, o board, com o cumprimento do código de ética da Intel.

O sistema de normas anticorrupção deve ser estímulo não à criação apenas formal de um programa de integridade, mas sim à busca de um renovado modelo de negócios que contemple a função social da empresa e crie uma consistente vantagem competitiva para aquelas que estão comprometidas com sua efetividade. É chegada a hora de as empresas atuarem em favor da promoção de uma cultura da integridade no Brasil.



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[1] https://newsroom.intel.com/news-releases/intel-ceo-brian-krzanich-resigns-board-appoints-bobswan-interim-ceo/
[2] https://www.terra.com.br/noticias/tecnologia/presidente-da-intel-brian-krzanich-deixa-cargo-aposrelacionamento-com-funcionaria,fe3d2621d9ea82587c8e975b93596e33aq2ggfzb.html
[3] http://www.cgu.gov.br/assuntos/etica-e-integridade/empresa-pro-etica/arquivos/documentos-emanuais/novo-regulamento-empresa-pro-etica/view
[4] http://www.cgu.gov.br/Publicacoes/etica-e-integridade/arquivos/programa-de-integridade-diretrizespara-empresas-privadas.pdf
[5] http://www.cade.gov.br/acesso-a-informacao/publicacoes-institucionais/guias_do_Cade/guiacompliance-versao-oficial.pdf

Heloisa Carpena – Advogada. Profa. PUC-Rio. Doutora em direito (UERJ). Especialista em direito do consumidor. Integrou o MPRJ na área da proteção dos interesses coletivos. Certificada em advanced compliance pela CISI (2018)