sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

STJ. Saiba um pouco mais sobre a desconsideração da personalidade jurídica (artigo 50 do CC/2002), após as alterações promovidas pela Lei Federal n. 13.874/2019 (Lei da Liberdade Econômica)


Data: 09/12/2019
A discussão posta em causa diz respeito a presença dos requisitos necessários para a desconsideração de personalidade jurídica da sociedade empresária.
O art. 50 do CC/02, com as alterações promovidas pela Lei nº 13.874/2019, sancionada aos 20/09/2019, exige, para a desconsideração da personalidade jurídica, a comprovação de abuso da personalidade, o que pode se dar pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, e o benefício direto ou indireto obtido pelo sócio. Vejam-se os termos da lei:
Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso.
§ 1º Para os fins do disposto neste artigo, desvio de finalidade é a utilização da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza.
§ 2º Entende-se por confusão patrimonial a ausência de separação de fato entre os patrimônios, caracterizada por:
I - cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador ou vice-versa;
II - transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto os de valor proporcionalmente insignificante; e
III - outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial.
§ 3º O disposto no caput e nos §§ 1º e 2º deste artigo também se aplica à extensão das obrigações de sócios ou de administradores à pessoa jurídica.
§ 4º A mera existência de grupo econômico sem a presença dos requisitos de que trata o caput deste artigo não autoriza a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica.
§ 5º Não constitui desvio de finalidade a mera expansão ou a alteração da finalidade original da atividade econômica específica da pessoa jurídica.
FLÁVIO TARTUCE, em artigo publicado no Jusbrasil, comentando a Lei da Liberdade Econômica e seus principais impactos para o Direito Civil, leciona que:
De início, a lei passou a viabilizar a desconsideração da personalidade jurídica - com a ampliação de responsabilidades - tão somente quanto ao sócio ou administrador que, direta ou indiretamente, for beneficiado pelo abuso. Há tempos defendo tal interpretação da norma, assim como outros juristas como Mário Luiz Delgado, para que o instituto da desconsideração não seja utilizado de forma desproporcional, abusiva e desmedida, atingindo pessoa natural que não tenha praticado o ato tido como abusivo ou ilícito. A título de exemplo, um sócio que não tenha tido qualquer benefício com a fraude praticada por outros membros da pessoa jurídica, seja de forma imediata ou mediata, não poderá ser responsabilizado por dívidas da empresa. Assim, neste primeiro aspecto, o texto emergente avança, e muito.
Os novos parágrafos, que foram incluídos, desde o texto da Medida Provisória, trazem critérios objetivos para a incidência da desconsideração nas relações entre civis, em prol de uma suposta certeza e segurança jurídica. Advirta-se que essa norma não se aplica à desconsideração da personalidade jurídica prevista em outros sistemas, como no Código de Defesa do Consumidor, na legislação ambiental (Lei n. 9.605⁄1998) e na (Lei n. ⁄2013). Os dois critérios alternativos previstos no caput do art. 50 do CC⁄2002 – precursores da chamada teoria maior da desconsideração - são o desvio de finalidade e a confusão patrimonial.
A respeito do desvio de finalidade, a norma passaria a estabelecer como requisito fundamental o elemento doloso ou intencional na prática da lesão ao direito de outrem ou de atos ilícitos, para que o instituto fosse aplicado. Como advertimos em textos anteriores, essa inovação representaria um grande retrocesso, travando a incidência da categoria, substancialmente por distanciar-se da teoria objetiva do abuso de direito, tratado pelo art. 187 do Código Civil, sem qualquer menção ao elemento subjetivo do dolo ou da culpa, e que fundamenta o instituto da desconsideração da personalidade jurídica.
Como antes sustentei, a Medida Provisória n. 881 adotava um modelo subjetivo e agravado, pois somente o dolo e não a simples culpa geraria a configuração desse primeiro elemento da desconsideração. Argumentava-se, entre os defensores da norma, que o elemento doloso para a aplicação da desconsideração estava consolidado no âmbito da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, o que não é verdade. Como é notório, a Corte tem exigido o dolo apenas para os casos de encerramento irregular das atividades, quando a empresa as encerra sem honrar com as suas obrigações e altera formalmente as informações perante os órgãos competentes (STJ, EREsp 1.306.553⁄SC, Rel. Ministra Maria Isabel Gallotti, Segunda Seção, julgado em 10⁄12⁄2014, DJe 12⁄12⁄2014).
Como defendi em texto anterior, a melhor redação do comando ficaria com a seguinte dicção: "Para fins do disposto neste artigo, desvio de finalidade é a utilização da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza". Isso acabou sendo sugerido por alguns parlamentares, caso do Deputado André Figueiredo, por meio da Emenda n. 90: "suprima-se a expressão 'dolosa' do § 1º do art. 50 da Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil, alterado pelo art. 7º da MPV n. 881, de 2019".
Como acrescentei em outro texto que escrevi, grandes e até insuperáveis seriam os entraves para a incidência da desconsideração da personalidade jurídica – sobretudo na sua modalidade inversa – no âmbito do Direito de Família e das Sucessões, para os quais tem aplicação o art. 50 do Código Civil. Importante sempre lembrar que o elemento subjetivo, notadamente a culpa, foi afastado em demandas relativas a esses ramos jurídicos nos últimos anos, e a Medida Provisória n. 881 trazia a volta de sua análise para a desconsideração, especialmente do dolo.
Sobre a confusão patrimonial, foram mantidos os parâmetros objetivos que estavam previstos na Medida Provisória n. 881, sem qualquer modificação, a saber: a) o cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador ou vice-versa; b) a transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto os de valor proporcionalmente insignificante; e c) outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial. Somente quanto à primeira previsão tinha a minha ressalva, e sugeri que fosse retirada a palavra "repetitivo", pois a confusão patrimonial poderia estar configurada por um único cumprimento obrigacional da pessoa jurídica em relação aos seus membros; por um ato isolado, é possível realizar um total esvaziamento patrimonial com o intuito de prejudicar credores. De todo modo, tal entendimento não foi adotado, e caberá à jurisprudência fazer a mitigação do texto legal, se for o caso, nessas situações.
Sobre o § 3º do art. 50, continuo a entender que seria mais interessante adaptá-lo ao art. 133, § 2º, do Código de Processo Civil de 2015, que, ao tratar do incidente de desconsideração da personalidade jurídica, estabelece que "aplica-se o disposto neste Capítulo à hipótese de desconsideração inversa da personalidade jurídica". A redação que consta da nova lei, confirmando a Medida Provisória anterior, ao prever que "o disposto no caput e nos §§ 1º e 2º deste artigo também se aplica à extensão das obrigações de sócios ou de administradores à pessoa jurídica", pode até trazer a falsa impressão de que não se trata da desconsideração inversa. De todo modo, como foi essa a opção do legislador, é preciso sempre afirmar que se trata dos mesmos institutos.
Quanto ao § 4º do art. 50, reitero o meu apoio ao texto legislativo, ao preceituar que "a mera existência de grupo econômico sem a presença dos requisitos de que trata o caput não autoriza a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica". Foi positivada, portanto, a viabilidade jurídica do uso da desconsideração da personalidade jurídica para atingir outra pessoa jurídica, o que se denomina como desconsideração econômica, indireta ou sucessão entre empresas.
Como última mudança do art. 50 do Código Civil, o seu § 5º confirma o texto da MP, no sentido de que não constitui desvio de finalidade a mera expansão ou a alteração da finalidade original da atividade econômica específica da pessoa jurídica. Lamenta-se a manutenção a respeito da alteração da finalidade original, que deveria ter sido retirada do texto de conversão, o que foi proposto pelo Senador Pacheco, por meio da Emenda n. 173.
Assim como em textos anteriores, cito mais uma vez o exemplo de uma fundação, que pode ter a sua autonomia desconsiderada, com o fim de responsabilização dos seus administradores, caso altere a sua finalidade inicial com o objetivo de se desviar de seus fins nobres, constantes do art. 62, parágrafo único, do Código Civil. Nessa hipótese, defendo que já há motivo para aplicar o instituto do art. 50 do Código Civil, o que novamente deve ser considerado pela jurisprudência, abrindo-se uma exceção ao texto legal.
Como palavras finais, entre erros e acertos, penso que o texto da lei a respeito da desconsideração da personalidade jurídica é bem melhor do que o original e também do que constava da Medida Provisória, em especial pela retirada do dolo, tendo o Parlamento Brasileiro cumprido o seu papel e a sua função nos debates que permearam a conversão da MP e no aperfeiçoamento do texto (https:⁄⁄flaviotartuce.jusbrasil.com.br⁄artigos⁄760633426⁄a-lei-da-liber
dade-economica-lei-13874-2019-e-os-seus-principais-impactos-para-o-direito-civil-parte-i) (sem destaque no original).
Portanto, a desconsideração da personalidade jurídica é medida excepcional que permite alcançar os bens das pessoas naturais (sócios ou administradores) que tenham se beneficiado direta ou indiretamente pelos abusos praticados, responsabilizando-as pelos prejuízos que causarem a terceiros.

REsp n. 1.838.009

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