As cotas de sociedade em conta de participação não podem ser
consideradas bens individualizados para fins de permuta
APELAÇÃO CÍVEL nº 1019483-77.2024.8.26.0577
APELANTE: EC e I. LTDA
APELADO: 1 O. de R. de I. e A. da C. de SJ dos C.
VOTO Nº 43.678
Direito civil – Apelação cível – Registro de imóveis –
Negativa de registro de escritura pública de permuta – Recurso improvido.
I. Caso em Exame
1. Apelação interposta contra sentença que negou o registro
de escritura pública de permuta com torna e constituição de alienação
fiduciária em garantia. O apelante alega que as cotas de sociedade em conta de
participação permutadas são de titularidade do sócio ostensivo e podem ser
objeto de negócios jurídicos, solicitando a reforma da sentença para registro da
escritura.
II. Questão em Discussão
2. A questão em discussão consiste em determinar se as cotas
de uma Sociedade em Conta de Participação, que não possui personalidade
jurídica, podem ser consideradas bens para fins de permuta e se a operação tem
por escopo a comercialização de unidade de autonomia futura sem o registro da
incorporação.
III. Razões de Decidir
3. A permuta exige
que os bens sejam trocados, mas as quotas de sociedade sem personalidade
jurídica não podem ser consideradas bens individualizados.
4. A permuta de propriedade por participação societária
esconde a real intenção de comercializar unidades autônomas sem registro prévio
da incorporação imobiliária, em violação e fraude às normas cogentes da L.
4.591/64.
IV. Dispositivo e Tese
5. Recurso desprovido.
Tese de julgamento:
1. Cotas de sociedade sem personalidade jurídica não são bens para fins
de permuta. 2. A comercialização de unidades autônomas sem registro de
incorporação é vedada.
Legislação Citada:
Código Civil, art. 104, II; arte. 991; arte. 992; arte. 993.
Lei nº 4.591/64, art. 32; arte. 65.
Trata-se de apelação interposta por Esdras Construtora e
Incorporadora Ltda. contra a r. sentença de fls. 137/140, proferida pelo MM.
Juiz Corregedor Permanente do 1º Registro de Imóveis e Anexos de São José dos
Campos, que negociou o registro de escritura pública de permuta com torna e
constituição de alienação fiduciária em garantia.
Alega-se apelante, em síntese, que as cotas permutadas não
são de propriedade da Sociedade em Conta de Participação (SCP), que não possui
personalidade jurídica, e sim do sócio ostensivo, que ostentam a titularidade
dos direitos e obrigações decorrentes da sociedade, de modo que as cotas
representam direitos que podem ser objeto de negócios jurídicos. Sustenta que o
uso de cotas como forma de pagamento é uma prática comum no mercado e deve ser
admitido como válido. Afirma que o princípio da autonomia permite que as cotas
de participação do sócio da Sociedade em Conta de Participação sejam tratadas
como ativos com valor econômico, podendo, portanto, ser objeto de permuta. Diz,
ainda, que a primeira nota devolutiva não abordou a questão relativa à
inviabilidade da permuta envolvida nas quotas. Pede, ao final, a concessão de
tutela de urgência e de efeito suspensivo à sentença, bem como a sua reforma
para que seja determinado o registro da escritura pública (fls. 159/182).
O pedido de tutela de urgência e o efeito suspensivo
exigidos foram negados (fls. 198/199).
A Procuradoria de Justiça opinou pelo não provimento do
recurso (fls. 205/206).
É o relatório.
De início, cabe frisar que o apresentador de um título não
tem direito adquirido à inscrição caso cumpra as critérios constantes na nota
devolutiva.
Embora idealmente o registrador deva formular critérios
eventualmente de uma só vez [1] , em nota devolutiva única, é evidente que lhe
cabe, ao constatar irregularidade no título, não vislumbrada no primeiro exame,
indicá-la em uma segunda nota devolutiva, e não simplesmente ignorar a falha
percebida.
Por esse motivo, pouco importante se na primeira nota
devolutiva é tão-somente o reconhecimento de firma das testemunhas do
instrumento (fls. 107/108); constatada irregularidade em momento posterior era
dever da Indicação Oficial (fls. 102/104).
A escritura pública de permuta apresenta o registro tem como
partes, de um lado, E. Carone Empreendimentos Imobiliários Ltda., e de outro,
Esdras Construtora e Incorporadora Ltda. (fls. 40/51). De acordo com o
instrumento, E. Carone Empreendimentos Imobiliários Ltda. entregará a Esdras
Construtora e Incorporadora Ltda. imóvel de sua propriedade, matriculado sob nº
85.520 no 1º Registro de Imóveis de São José dos Campos, avaliado em R$
38.525.000,00, e recebido desta última trinta e quatro cotas de uma Sociedade
em Conta de Participação, avaliado em R$ 20.000.000,00, e o valor de R$
18.525.000,00 a ser pago nas condições descritas na escritura (fls. 40/51).
A desqualificação, mantida pelo MM. Juiz Corregedor
Permanente, se deve ao fato de o objeto da permuta envolver cotas de sociedade
que não possua personalidade jurídica. Segundo a Oficial e o MM. Juiz
Corregedor Permanente, o negócio jurídico infringe o art. 104, II, do Código
Civil [2] , por dois motivos distintos: em primeiro lugar, porque a sociedade
em conta de participação não possui nem capital social nem autonomia
patrimonial, de forma que o objeto da aventura não pode ser tido como possível;
em segundo lugar, porque há promessas de que cada uma das trinta e quatro cotas
da sociedade em conta de participação correspondam a uma futura unidade de
empreendimento imobiliário, de forma que a negociação delas estaria ocorrendo
sem o registro da incorporação imobiliária. O objeto da aventura seria ilícito,
portanto.
E a dúvida é realmente procedente.
De acordo com Nelson Rosenvald, “ denomina-se permuta, troca
escambo, barganha ou permutação a relação transacional pela qual uma das partes
se obriga a entregar um bem para receber outro, que será entregue pela contraparte
” (Código Civil comentado: doutrina e explicação: Lei n. 10.406 de 10.01.2002 /
coordenador Cezar Peluso. – 11. Ed. Rev. E atual. – Barueri, SP : Manole, 2017,
p. 554).
Embora torne em dinheiro não descaracterize, a permuta exige
que bens sejam trocados. Isso, no entanto, não ocorre no caso em análise, em
que um bem imóvel é trocado por cotas de sociedade em conta de participação.
Com efeito, cotas de sociedade sem personalidade jurídica, cuja constituição
independente de qualquer formalidade (art. 992 do Código Civil), não podem ser
consideradas bens singulares e passíveis de individualização. 993 do Código
Civil), poderá ser considerado bem identificado ou identificável para fins de
permuta.
Sobre a sociedade em conta de participação, ensina Marcelo Fortes
Barbosa Filho:
“ Celebrado o contrato de sociedade e adotado a fórmula
típica prevista para a conta de participação, não se produz qualquer
exteriorização, pois, em se tratando de uma sociedade despersonificada, uma
sociedade-contrato, que efetiva todo relacionamento com terceiros é o sócio
ostensivo (…). As relações internas, dada a sua natureza contratual, permanecem
regradas pelas cláusulas acordadas, limitando-se os efeitos do negócio
celebrado às partes, ou seja, aos sócios. Os terceiros se mantêm alheios à
conta de participação, não podendo extrair dela eficácia” (Código Civil
comentado: doutrina e doutrina: Lei n. 10.406 de 10.01.2002 / coordenador Cezar
Peluso. – 11. Ed. Rev. E atual. – Barueri, SP : Manole, 2017, p. 954/955).
Essa falta de exteriorização dos atos societários, com
terceiros alheios à conta de participação, mostra que as cotas sociais
indicadas na escritura não se caracterizam como objeto individualizado
possível, determinado ou determinável para um contrato de permuta.
O segundo óbice, relacionado aos compromissos de que as
cotas da sociedade em conta de participação envolvida em unidades futuras de
empreendimento imobiliário, também se sustentam.
Na suscitação da dúvida inversa, a ora apelante destacou:
“Considerando as práticas de mercado relacionadas ao negócio
jurídico firmado, as cotas societárias são definidas como participações do
patrimônio especial da SCP, para fins, posteriores, de liquidação da sociedade
e distribuição dos lucros e resultados, convertendo-se cada cota em uma unidade
imobiliária ao final do empreendimento, a qual fará jus o sócio participante
que a possui, desde que esteja regular com os aportes” (fls. 12).
E o próprio instrumento público realizou o registro, em que
as cotas da Sociedade em Conta de Participação são indicadas em numeração não
sequencial (“quotas de nºs 211, 212, 215, 216, 217, 218, 221, 222, 223, 224,
227, 228, 230, 234, 236, 240, 242, 246, 248, 252, 254, 258, 380, 416, 417, 418,
419, 420, 421, 422, 427, 428, 429 e 430” – fls 41), levam à conclusão de que a
permuta de imóvel por participação societária esconde a real. intenção dos
contratantes, que é a comercialização de unidades inovadoras de empreendimento
imobiliário futuro.
Antes do registro da incorporação, porém, a introdução desse
tipo de comercialização é conhecida. Nesse sentido o art. 32 da Lei nº
4.591/64:
Art. 32. O proprietário somente poderá alienar ou onerar as
frações ideais de terrenos e acessos que correspondam às futuras unidades
autônomas após o registro, no registro de imóveis competente, do memorial de
incorporação composto pelos seguintes documentos: (…) Aliás, a Lei nº 4.591/64
protege os adquirentes de futuras unidades autônomas a tal ponto, que a
transação delas sem o registro anterior da incorporação considerada é crime
contra a economia popular:
Art. 65. É crime contra a economia popular promover
incorporação, fazer, em proposta, contratos, prospectos ou comunicação ao
público ou aos detalhes, afirmação falsa sóbre a construção do condomínio,
alienação das frações ideais do terreno ou sóbre a construção das edificações.
PENA – reclusão de um a quatro anos e multa de cinco a
cinqüenta vêzes o maior salário-mínimo legal vigente no País.
§ 1º Incorrem na mesma pena:
I – o incorporador, o corretor e o construtor, indivíduos
bem como os diretores ou gerentes de emprêsa coletiva incorporadara, corretora
ou construtora que, em proposta, contrato, publicidade, prospecto, relatório,
parecer, balanço ou comunicação ao público ou aos condomínios, candidatos ou
subscritores de unidades, façam em afirmação falsa sóbre a constituição do
condomínio, alienação das frações ideais ou sóbre a construção das edificações;
II – o incorporador, o corretor e o construtor individual,
bem como os diretores ou gerentes de empresa coletiva, incorporadora, corretora
ou construtora que utilize, ainda que a título de empréstimo, em proveito
próprio ou de terceiros, bens ou haveres destinados a incorporação contratada
por administração, sem prévia autorização dos interessados.
Percebe-se, dessa forma, que o registro da escritura de
permuta daria um conjunto de alienação de cotas que abrange as futuras unidades
inovadoras, sem que a apelante, incorporadara, tenha registrado a incorporação
imobiliária.
Caso acolhido o registro, nada impediria que o credor de
entrega das unidades futuras passasse a cede-los a terceiros, em verdadeiro
negócio indireto em fraude às normas cogentes da L. 4.591/64.
A alegação de que o registro pretende caracterizar modelo de
negócio diverso não convence. Com efeito, a Lei nº 4.591/64 em momento algum
dispensa a inscrição da incorporação imobiliária na hipótese de o incorporador
pretendente alienar futuras unidades inovadoras. Não há previsão no sentido de
que a operação relativa à venda de futuras unidades autônomas possa ser
realizada por meio de negociação de cotas de sociedade que pelo menos possua
personalidade jurídica. E o fato disso ocorre na prática, como é alegado na
suscitação de dúvida e no recurso, não é motivo para que se permita que a
irregularidade constatada seja objeto de inscrição no registro imobiliário.
Finalmente, considerando o pleito formulado pelo Ministério
Público a fls. 103 e seu indeferimento na sentença (fls. 138/139), remetam-se
cópias das principais peças do processo ao Ministério Público, para apuração de
eventual cometimento de crime, e à Secretaria de Assuntos Jurídicos da
Prefeitura Municipal de São José dos Campos.
Ante o exposto, pelo meu voto, nego provimento à apelação, com observação.
FRANCISCO LOUREIRO
Corregedor Geral da Justiça e Relator
Notas:
[1] Nesse sentido, o
item 38 do Capítulo XX da NSCGJ: “ É dever do Registrador proceder ao exame
exaustivo do título apresentado. Havendo exigência de qualquer ordem, deverão
ser formuladas de uma só vez, por escrito, de forma clara e objetiva, em
formato eletrônico ou papel timbrado do cartório, com identificação e
assinatura do preposto responsável, para que as satisfaçam ou exijam a
suscitação de dúvida ou procedimento administrativo”.
[2] Arte. 104. A
validade do negócio jurídico exige:
I – agente capaz;
II – objeto lícito, possível, determinado ou determinável;
III – forma prescrita ou não defesa em lei. (Acervo INR – DJe de 03.02.2025 – SP)