quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

As cotas de sociedade em conta de participação não podem ser consideradas bens individualizados para fins de permuta



APELAÇÃO CÍVEL nº 1019483-77.2024.8.26.0577

APELANTE: EC e I. LTDA

APELADO: 1 O. de R. de I. e A. da C. de SJ dos C.

VOTO Nº 43.678

Direito civil – Apelação cível – Registro de imóveis – Negativa de registro de escritura pública de permuta – Recurso improvido.

 I. Caso em Exame

 1. Apelação interposta contra sentença que negou o registro de escritura pública de permuta com torna e constituição de alienação fiduciária em garantia. O apelante alega que as cotas de sociedade em conta de participação permutadas são de titularidade do sócio ostensivo e podem ser objeto de negócios jurídicos, solicitando a reforma da sentença para registro da escritura.

 II. Questão em Discussão

 2. A questão em discussão consiste em determinar se as cotas de uma Sociedade em Conta de Participação, que não possui personalidade jurídica, podem ser consideradas bens para fins de permuta e se a operação tem por escopo a comercialização de unidade de autonomia futura sem o registro da incorporação.

 III. Razões de Decidir

 3.  A permuta exige que os bens sejam trocados, mas as quotas de sociedade sem personalidade jurídica não podem ser consideradas bens individualizados.

 4. A permuta de propriedade por participação societária esconde a real intenção de comercializar unidades autônomas sem registro prévio da incorporação imobiliária, em violação e fraude às normas cogentes da L. 4.591/64.

 IV. Dispositivo e Tese

 5. Recurso desprovido.

 Tese de julgamento:  1. Cotas de sociedade sem personalidade jurídica não são bens para fins de permuta. 2. A comercialização de unidades autônomas sem registro de incorporação é vedada.

 Legislação Citada:

 Código Civil, art. 104, II; arte. 991; arte. 992; arte. 993.

 Lei nº 4.591/64, art. 32; arte. 65.

 Trata-se de apelação interposta por Esdras Construtora e Incorporadora Ltda. contra a r. sentença de fls. 137/140, proferida pelo MM. Juiz Corregedor Permanente do 1º Registro de Imóveis e Anexos de São José dos Campos, que negociou o registro de escritura pública de permuta com torna e constituição de alienação fiduciária em garantia.

 Alega-se apelante, em síntese, que as cotas permutadas não são de propriedade da Sociedade em Conta de Participação (SCP), que não possui personalidade jurídica, e sim do sócio ostensivo, que ostentam a titularidade dos direitos e obrigações decorrentes da sociedade, de modo que as cotas representam direitos que podem ser objeto de negócios jurídicos. Sustenta que o uso de cotas como forma de pagamento é uma prática comum no mercado e deve ser admitido como válido. Afirma que o princípio da autonomia permite que as cotas de participação do sócio da Sociedade em Conta de Participação sejam tratadas como ativos com valor econômico, podendo, portanto, ser objeto de permuta. Diz, ainda, que a primeira nota devolutiva não abordou a questão relativa à inviabilidade da permuta envolvida nas quotas. Pede, ao final, a concessão de tutela de urgência e de efeito suspensivo à sentença, bem como a sua reforma para que seja determinado o registro da escritura pública (fls. 159/182).

 O pedido de tutela de urgência e o efeito suspensivo exigidos foram negados (fls. 198/199).

 A Procuradoria de Justiça opinou pelo não provimento do recurso (fls. 205/206).

 É o relatório.

 De início, cabe frisar que o apresentador de um título não tem direito adquirido à inscrição caso cumpra as critérios constantes na nota devolutiva.

 Embora idealmente o registrador deva formular critérios eventualmente de uma só vez [1] , em nota devolutiva única, é evidente que lhe cabe, ao constatar irregularidade no título, não vislumbrada no primeiro exame, indicá-la em uma segunda nota devolutiva, e não simplesmente ignorar a falha percebida.

 Por esse motivo, pouco importante se na primeira nota devolutiva é tão-somente o reconhecimento de firma das testemunhas do instrumento (fls. 107/108); constatada irregularidade em momento posterior era dever da Indicação Oficial (fls. 102/104).

 A escritura pública de permuta apresenta o registro tem como partes, de um lado, E. Carone Empreendimentos Imobiliários Ltda., e de outro, Esdras Construtora e Incorporadora Ltda. (fls. 40/51). De acordo com o instrumento, E. Carone Empreendimentos Imobiliários Ltda. entregará a Esdras Construtora e Incorporadora Ltda. imóvel de sua propriedade, matriculado sob nº 85.520 no 1º Registro de Imóveis de São José dos Campos, avaliado em R$ 38.525.000,00, e recebido desta última trinta e quatro cotas de uma Sociedade em Conta de Participação, avaliado em R$ 20.000.000,00, e o valor de R$ 18.525.000,00 a ser pago nas condições descritas na escritura (fls. 40/51).

 A desqualificação, mantida pelo MM. Juiz Corregedor Permanente, se deve ao fato de o objeto da permuta envolver cotas de sociedade que não possua personalidade jurídica. Segundo a Oficial e o MM. Juiz Corregedor Permanente, o negócio jurídico infringe o art. 104, II, do Código Civil [2] , por dois motivos distintos: em primeiro lugar, porque a sociedade em conta de participação não possui nem capital social nem autonomia patrimonial, de forma que o objeto da aventura não pode ser tido como possível; em segundo lugar, porque há promessas de que cada uma das trinta e quatro cotas da sociedade em conta de participação correspondam a uma futura unidade de empreendimento imobiliário, de forma que a negociação delas estaria ocorrendo sem o registro da incorporação imobiliária. O objeto da aventura seria ilícito, portanto.

 E a dúvida é realmente procedente.

 De acordo com Nelson Rosenvald, “ denomina-se permuta, troca escambo, barganha ou permutação a relação transacional pela qual uma das partes se obriga a entregar um bem para receber outro, que será entregue pela contraparte ” (Código Civil comentado: doutrina e explicação: Lei n. 10.406 de 10.01.2002 / coordenador Cezar Peluso. – 11. Ed. Rev. E atual. – Barueri, SP : Manole, 2017, p. 554).

 Embora torne em dinheiro não descaracterize, a permuta exige que bens sejam trocados. Isso, no entanto, não ocorre no caso em análise, em que um bem imóvel é trocado por cotas de sociedade em conta de participação. Com efeito, cotas de sociedade sem personalidade jurídica, cuja constituição independente de qualquer formalidade (art. 992 do Código Civil), não podem ser consideradas bens singulares e passíveis de individualização. 993 do Código Civil), poderá ser considerado bem identificado ou identificável para fins de permuta.

 Sobre a sociedade em conta de participação, ensina Marcelo Fortes Barbosa Filho:

 “ Celebrado o contrato de sociedade e adotado a fórmula típica prevista para a conta de participação, não se produz qualquer exteriorização, pois, em se tratando de uma sociedade despersonificada, uma sociedade-contrato, que efetiva todo relacionamento com terceiros é o sócio ostensivo (…). As relações internas, dada a sua natureza contratual, permanecem regradas pelas cláusulas acordadas, limitando-se os efeitos do negócio celebrado às partes, ou seja, aos sócios. Os terceiros se mantêm alheios à conta de participação, não podendo extrair dela eficácia” (Código Civil comentado: doutrina e doutrina: Lei n. 10.406 de 10.01.2002 / coordenador Cezar Peluso. – 11. Ed. Rev. E atual. – Barueri, SP : Manole, 2017, p. 954/955).

 Essa falta de exteriorização dos atos societários, com terceiros alheios à conta de participação, mostra que as cotas sociais indicadas na escritura não se caracterizam como objeto individualizado possível, determinado ou determinável para um contrato de permuta.

 O segundo óbice, relacionado aos compromissos de que as cotas da sociedade em conta de participação envolvida em unidades futuras de empreendimento imobiliário, também se sustentam.

 Na suscitação da dúvida inversa, a ora apelante destacou:

 “Considerando as práticas de mercado relacionadas ao negócio jurídico firmado, as cotas societárias são definidas como participações do patrimônio especial da SCP, para fins, posteriores, de liquidação da sociedade e distribuição dos lucros e resultados, convertendo-se cada cota em uma unidade imobiliária ao final do empreendimento, a qual fará jus o sócio participante que a possui, desde que esteja regular com os aportes” (fls. 12).

 E o próprio instrumento público realizou o registro, em que as cotas da Sociedade em Conta de Participação são indicadas em numeração não sequencial (“quotas de nºs 211, 212, 215, 216, 217, 218, 221, 222, 223, 224, 227, 228, 230, 234, 236, 240, 242, 246, 248, 252, 254, 258, 380, 416, 417, 418, 419, 420, 421, 422, 427, 428, 429 e 430” – fls 41), levam à conclusão de que a permuta de imóvel por participação societária esconde a real. intenção dos contratantes, que é a comercialização de unidades inovadoras de empreendimento imobiliário futuro.

 Antes do registro da incorporação, porém, a introdução desse tipo de comercialização é conhecida. Nesse sentido o art. 32 da Lei nº 4.591/64:

 Art. 32. O proprietário somente poderá alienar ou onerar as frações ideais de terrenos e acessos que correspondam às futuras unidades autônomas após o registro, no registro de imóveis competente, do memorial de incorporação composto pelos seguintes documentos: (…) Aliás, a Lei nº 4.591/64 protege os adquirentes de futuras unidades autônomas a tal ponto, que a transação delas sem o registro anterior da incorporação considerada é crime contra a economia popular:

 Art. 65. É crime contra a economia popular promover incorporação, fazer, em proposta, contratos, prospectos ou comunicação ao público ou aos detalhes, afirmação falsa sóbre a construção do condomínio, alienação das frações ideais do terreno ou sóbre a construção das edificações.

 PENA – reclusão de um a quatro anos e multa de cinco a cinqüenta vêzes o maior salário-mínimo legal vigente no País.

 § 1º Incorrem na mesma pena:

 I – o incorporador, o corretor e o construtor, indivíduos bem como os diretores ou gerentes de emprêsa coletiva incorporadara, corretora ou construtora que, em proposta, contrato, publicidade, prospecto, relatório, parecer, balanço ou comunicação ao público ou aos condomínios, candidatos ou subscritores de unidades, façam em afirmação falsa sóbre a constituição do condomínio, alienação das frações ideais ou sóbre a construção das edificações;

 II – o incorporador, o corretor e o construtor individual, bem como os diretores ou gerentes de empresa coletiva, incorporadora, corretora ou construtora que utilize, ainda que a título de empréstimo, em proveito próprio ou de terceiros, bens ou haveres destinados a incorporação contratada por administração, sem prévia autorização dos interessados.

 Percebe-se, dessa forma, que o registro da escritura de permuta daria um conjunto de alienação de cotas que abrange as futuras unidades inovadoras, sem que a apelante, incorporadara, tenha registrado a incorporação imobiliária.

 Caso acolhido o registro, nada impediria que o credor de entrega das unidades futuras passasse a cede-los a terceiros, em verdadeiro negócio indireto em fraude às normas cogentes da L. 4.591/64.

 A alegação de que o registro pretende caracterizar modelo de negócio diverso não convence. Com efeito, a Lei nº 4.591/64 em momento algum dispensa a inscrição da incorporação imobiliária na hipótese de o incorporador pretendente alienar futuras unidades inovadoras. Não há previsão no sentido de que a operação relativa à venda de futuras unidades autônomas possa ser realizada por meio de negociação de cotas de sociedade que pelo menos possua personalidade jurídica. E o fato disso ocorre na prática, como é alegado na suscitação de dúvida e no recurso, não é motivo para que se permita que a irregularidade constatada seja objeto de inscrição no registro imobiliário.

 Finalmente, considerando o pleito formulado pelo Ministério Público a fls. 103 e seu indeferimento na sentença (fls. 138/139), remetam-se cópias das principais peças do processo ao Ministério Público, para apuração de eventual cometimento de crime, e à Secretaria de Assuntos Jurídicos da Prefeitura Municipal de São José dos Campos.

 Ante o exposto, pelo meu voto,  nego provimento  à apelação, com observação.

 FRANCISCO LOUREIRO

 Corregedor Geral da Justiça e Relator

 Notas:

 [1]  Nesse sentido, o item 38 do Capítulo XX da NSCGJ: “ É dever do Registrador proceder ao exame exaustivo do título apresentado. Havendo exigência de qualquer ordem, deverão ser formuladas de uma só vez, por escrito, de forma clara e objetiva, em formato eletrônico ou papel timbrado do cartório, com identificação e assinatura do preposto responsável, para que as satisfaçam ou exijam a suscitação de dúvida ou procedimento administrativo”.

 [2]  Arte. 104. A validade do negócio jurídico exige:

 I – agente capaz;

 II – objeto lícito, possível, determinado ou determinável;

 III – forma prescrita ou não defesa em lei.  (Acervo INR – DJe de 03.02.2025 – SP)

 

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