terça-feira, 8 de outubro de 2019

DIREITO CIVIL ATUAL - A dissolução parcial é adequada para as sociedades anônimas?

2 de setembro de 2019, 13h51

Por Alfredo de Assis Gonçalves Neto

Nosso "decimonônico" Código Comercial não continha previsão clara sobre a retirada de sócio nas sociedades comerciais. É verdade que, em seu art. 339, dispunha a respeito da despedida do sócio, porém, apenas para o propósito de mantê-lo vinculado ao cumprimento das obrigações sociais anteriormente assumidas.[1]

De todo modo, àquele que se pretendesse desligar dos vínculos societários era assegurado o direito de pôr fim à própria sociedade, consoante previa o art. 335, n. 5, do mesmo Código, ao arrolar, entre as causas de sua dissolução, a vontade potestativa de qualquer dos sócios. Essa norma e, bem assim, as que previam como causas de dissolução da sociedade acontecimentos vinculados direta e exclusivamente à pessoa de um de seus integrantes, como o falecimento, a incapacidade e a falência de sócio (mesmo artigo, ns. 2 e 4), soam estranhas nos dias atuais, mas estiveram em perfeita sintonia com visão individualista da época e com a concepção do instituto da sociedade como um contrato bilateral celebrado entre pessoas naturais, que assim se uniam em razão de laços de amizade ou de conhecimento pessoais para realizar um empreendimento, econômico ou não, de interesse comum.

Com o desenvolvimento da noção de contrato plurilateral e o esmaecimento dos primados individualistas que, dentre outros resultados, fizeram nascer a preocupação com a preservação da empresa (interesse de uma coletividade), essas disposições, em lenta evolução, passaram a sofrer uma interpretação construtiva: sem agredir o texto legal, a doutrina e, posteriormente, a jurisprudência procuraram dar-lhe um sentido lógico para atender as novas realidades. E, assim, as três causas de dissolução acima mencionadas passaram a ser entendidas como de dissolução da sociedade em relação, exclusivamente, ao sócio (i) que manifestasse a vontade de dissolvê-la, (ii) que viesse a falecer (ii) ou a falir (iii) ou a ser declarado incapaz. Com essa leitura, as antes referidas disposições (ns. 2, 4 e 5 do art. 335 do CCom) permitiram manter viva a sociedade, resguardando hígidos os vínculos societários existentes entre os demais sócios e só os rompendo em relação àquele perante o qual a sociedade dissolvia-se (parcialmente, portanto).

No tocante às companhias ou sociedades anônimas[2], porém, esses problemas não se colocavam, pois outras eram as causas de sua dissolução, que o mesmo Código Comercial para elas estabelecia, visando à proteção do capital social e, assim, distanciando-as das pessoas de seus acionistas, isto é, de quem quer que fosse titular de suas ações: a) a expiração do seu prazo de duração; b) a quebra da sociedade; e c) a inviabilidade de atingir o intuito e fim sociais (CCom, art. 295). Ou seja, desde 1850 – e porque não dizer, desde o primeiro texto legislativo brasileiro que as regulou[3] – as causas de dissolução das sociedades anônimas jamais contemplaram as de cunho individualista estatuídas para a dissolução das demais sociedades.

No plano das sociedades limitadas havia a regra do art. 15 do Decreto 3.708/1919, que facultava a retirada do sócio dissidente de alguma alteração contratual.[4] Em tempos passados, muito se discutiu na doutrina se as causas de dissolução da sociedade limitada, como tipo intermediário entre as sociedades de pessoas e de capital, eram as previstas no Código Comercial ou as enumeradas na Lei do Anonimato. Prevaleceu o entendimento de que, como a lei de regência das limitadas mandava observar as disposições daquele Código para sua constituição, também deveriam ser aplicadas suas normas quando de sua dissolução.[5] Afora essa dúvida, outra havia, relativa ao prazo para exercício do direito de retirada, porque não previsto no Decreto 3.708/1919. Como só a Lei das Sociedades por Ações continha regra a respeito, restou firmada a orientação de que, por aplicação analógica das disposições dessa lei (art. 137, inc. IV), o direito de retirada do sócio da sociedade limitada deveria ser exercido em 30 dias contados da data do arquivamento da alteração contratual no registro próprio.

De toda maneira, a questão de saber se havia ou não prazo para o exercício do direito de retirada dificultou sobremaneira seu exercício até ser superada sob o entendimento, que prevaleceu, de se aplicarem à sociedade limitada as causas de dissolução previstas no Código Comercial. É que, se o direito de retirada estava sujeito ao prazo de 30 dias para ser exercido, passado esse lapso temporal, ainda restava ao sócio descontente a possibilidade de utilizar-se da regra do art. 335, n. 5, daquele Código, que lhe outorgava outra alternativa para romper seu vínculo com a sociedade - o da dissolução parcial. A partir dessa compreensão, tornou-se irrelevante, assim para a doutrina, como para os tribunais pátrios, a distinção entre retirada e dissolução parcial por vontade potestativa de sócio na então denominada sociedade por quotas de responsabilidade limitada.

Mas, como dito, esse não era um tema que afetasse o direito de retirada nas sociedades por ações. Afinal, o regime jurídico do anonimato, tal como concebido inicialmente, era incompatível com um amplo direito de retirada, tanto que só veio a ser introduzido em sua disciplina com o Decreto 21.536/1932; mesmo assim, de modo extremamente restrito, apenas para permitir ao acionista titular de ações preferenciais desligar-se da companhia quando prejudicado por modificação estatutária que alterasse as preferências conferidas às suas ações ou que criasse nova classe de preferenciais mais favorecida (art. 8º).

Leis posteriores ampliaram o rol das causas que facultavam o direito de retirada do acionista – todas destinadas a proteger o acionista minoritário –, hoje previstas, em caráter exaustivo, na Lei 6.404/1976. É o que se vê em seu art. 109, inc. V, que inseriu a retirada como um dos direitos essenciais do acionista, suscetível de ser exercido, apenas, "nos casos previstos nesta Lei".[6]

Isso significa que não há permissão para o intérprete aplicar por analogia quaisquer outras normas que tratem de direito de retirada de sócio em outras leis, como o faz o Código Civil em relação às demais sociedades por ele reguladas (arts. 1.029 e 1.077) e, eventualmente, em outras disposições legislativas que o regrem para qualquer outro tipo societário diverso do das sociedades por ações. Era essa, aliás, a interpretação que àquele enunciado legal davam, em uníssono, a doutrina e a jurisprudência pátrias.[7]

Tal era o panorama com que se deparou o Superior Tribunal de Justiça por ocasião do julgamento, pela 4ª. Turma, do REsp 111.294-PR. Tratava-se de caso no qual se capitulava uma causa de dissolução total e, para não a acolher, aquele Tribunal contornou-a, vencido o Relator, Min. Barros Monteiro, aplicando a solução que, até então, só era adotada para as sociedades limitadas. Eis a ementa:

DIREITO COMERCIAL. SOCIEDADE ANÔNIMA. GRUPO FAMILIAR. INEXISTÊNCIA DE LUCROS E DE DISTRIBUIÇÃO DE DIVIDENDOS HÁ VÁRIOS ANOS. DISSOLUÇÃO PARCIAL. SÓCIOS MINORITÁRIOS. POSSIBILIDADE. Pelas peculiaridades da espécie, em que o elemento preponderante, quando do recrutamento dos sócios, para a constituição da sociedade anônima envolvendo pequeno grupo familiar, foi a afeição pessoal que reinava entre eles, a quebra da affectio societatis conjugada à inexistência de lucros e de distribuição de dividendos, por longos anos, pode se constituir em elemento ensejador da dissolução parcial da sociedade, pois seria injusto manter o acionista prisioneiro da sociedade, com seu investimento improdutivo, na expressão de Rubens Requião. O princípio da preservação da sociedade e de sua utilidade social afasta a dissolução integral da sociedade anônima, conduzindo à dissolução parcial. Recurso parcialmente conhecido, mas improvido. (O negrito não está no texto.)

Efetivamente, tirante a afeição pessoal, introduzida na ementa como simples reforço argumentativo, porque desnecessário para o julgamento, eram firmes a doutrina e a jurisprudência de nossos tribunais no sentido de conceder a dissolução (total) da sociedade anônima, grande ou pequena, que não produzisse lucros por longos anos, por capitular-se a causa prevista no art. 206, inc. II, letra b, da Lei 6.404/1976: dissolve-se a companhia, por decisão judicial, "quando provado que não pode preencher o seu fim em ação proposta por acionistas que representem cinco por cento do capital social." [8]

E assim já era decidido porque, ao se referir a "fim", essa norma abrange, "tanto a realização do objeto social (escopo-meio) como a busca de lucros (escopo fim)."[9] Ou, no dizer CARVALHOSA e KUYVEN "a lucratividade compatível com a atividade empresarial exercida e a capacidade de compensar proporcionalmente os acionistas nesses resultados constituem requisitos fundamentais para a continuidade da existência da companhia. Se esta não puder produzir lucros, cabe dissolvê-la. O termo 'fim' tem duplo alcance, querendo, de um lado, significar a atividade empresarial estabelecida no estatuto (objeto social), e, no sentido teleológico, a meta de toda companhia, qual seja, a produção de lucros compatíveis e distribuíveis aos acionistas. Tanto na primeira hipótese como na segunda, não alcançando a companhia seu fim, cabe o pedido judicial de sua dissolução."[10]

Percebe-se, então, que o aresto construiu solução que evitou a inexorável dissolução total da companhia, capitulada no art. 206, inc. II, letra b, da Lei 6.404/1976. Com a concessão (decretação) da dissolução da companhia apenas em relação aos autores da ação, possibilitou a preservação da empresa para a companhia poder prosseguir entre os acionistas confiantes num futuro sucesso do empreendimento.

Fica evidente, diante disso, que as referências ao liame pessoal entre os acionistas e à natureza familiar da sociedade, porque totalmente desnecessárias para a dissolução de qualquer companhia, em relação à qual ocorra uma causa dissolutória, apenas têm sentido para acentuar sua proximidade com as sociedades limitadas, em relação às quais já se consagrara a possibilidade de serem dissolvidas parcialmente. Afinal, era a vez primeira que se determinava a dissolução parcial, e não total, de uma sociedade anônima.

Tanto bastou, porém, para que o Superior Tribunal de Justiça, com algumas oscilações iniciais, passasse a admitir, sem limitação, a dissolução parcial de companhia familiar (e, num segundo passo, de companhia fechada em geral) com fundamento, exclusivamente, na perda da affectio societatis.[11] E, ao sufragar esse entendimento, descurou-se do principal fundamento que norteou o leading case cuja ementa foi acima reproduzida, o qual se fundara, como visto, em causa legal específica de dissolução das companhias.

A partir de então, tal orientação passou a ser seguida, com raras exceções, pelos demais tribunais do País. E assim prosseguiu, mesmo diante da alteração do regime jurídico societário que veio com o Código Civil de 2002, no qual inexiste causa de dissolução fundada no simples querer de sócio (arts. 1.033 a 1.035) – ou, mais precisamente, no qual a causa de dissolução por vontade unilateral do sócio foi substituída pela vontade da maioria absoluta (art. 1.033, inc. III).

A inadequação dessa orientação e, também, o relevante tratamento que o Código de Processo Civil de 2015 conferiu ao tema serão objeto da segunda parte desta coluna, a ser publicada na próxima semana.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).

[1] O Conselheiro Orlando, nas suas anotações, colheu decisão que cuidava da exclusão com o sentido de despedida e outra na rara hipótese de o contrato social conferir ao sócio a faculdade de retirar-se da sociedade quando lhe aprouvesse, subtendendo um afastamento de caráter amistoso (Sallustiano Orlando de Araújo Costa, Código Comercial do Império do Brasil. 3ª. ed. Rio de Janeiro, Ed. Laemmert, 1878, p. 178, nota 473. Mais tarde, o despedir-se, quando não entendido como rompimento dos laços societários por exclusão, passou a ser compreendido como retirada, desde que se desse após a liquidação do último negócio da sociedade (Antônio Bento de Faria, Código Comercial Brasileiro. 3ª. ed. Rio de Janeiro, Ed. Jacintho Ribeiro Santos, 1920, p. 441, n. 354).

[2] Embora em total desuso, aí se incluam as sociedades em comandita por ações.

[3] De conformidade com o art. 10 do Decreto 575/1849, só por ato governamental, fundado no fato de as companhias não cumprirem as condições a que estavam sujeitas, é que poderiam dissolvidas: "O Governo nomeará, todas as vezes que entenda conveniente, um ou mais Agentes para fiscalizarem as operações das Sociedades, de que trata o Artigo antecedente; e poderá declará-las dissolvidas, quando se verificar que não cumprem as condições, a que se sujeitaram."

[4] "Assiste aos sócios que divergirem da alteração do contrato social a faculdade de se retirarem da sociedade, obtendo o reembolso da quantia correspondente ao seu capital, na proporção do último balanço aprovado. Ficam, porém, obrigados às prestações correspondentes às quotas respectivas, na parte em que essas prestações forem necessárias para pagamento das obrigações contraídas, até a data do registro definitivo da modificação do estatuto social."

[5] Por todos, Carlos Fulgêncio da Cunha Peixoto, A sociedade por quotas de responsabilidade limitada. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1958, v. II, n. 400, p. 8-9.

[6] O direito de retirada está previsto, com restrições, nos arts. 136-A, 137 e incisos, 221, 223, §4º, 230, 252, §§ 1º e 2º, 256, § 2º, e 296, § 4º, da Lei 6.404/1976.

[7] Tome-se como referência, por exemplo, o AgRg no Ag nº 34.120-SP, Rel. Min. Dias Trindade, STJ, 3ª. Turma, julg. em 26/4/1993, DJU de 14/6/1993.

[8] O paradigma vem desde o julgamento pelo STF do RE n. 20023, Relator o Min. Nelson Hungria, 1ª. Turma, julg. em 28/04/1952, DJU de 19-06-1952. Já na égide da vigente Lei do Anonimato, o STJ pronunciou-se no mesmo sentido ((REsp 164.125/RJ, Rel. Min. Costa Leite, 3ª. Turma, julg. em 26/05/1998, DJU de 03/08/1998).

[9] Do autor, Manual das companhias ou sociedades anônimas. 3ª. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, n. 152, p. 263.

[10] CARVALHOSA, Modesto; e KUYVEN, Fernando. Tratado de direito empresarial. v. III. 2ª. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2018, p. 1.201.

[11] Em minucioso apanhado sobre o tema, Ana Frazão faz uma minuciosa análise das decisões do Superior Tribunal de Justiça, demonstrando a fase em que relutou em aceitar a tese da dissolução parcial com base na affectio societatis, encaminhando-se, em seguida, para admiti-la como fundamento único, suficiente para ensejar o desligamento do acionista (O STJ e a dissolução parcial de sociedades por ações fechadas. Migalhas, 23.04.2019, disponível em https://www.migalhas.com.br/dPeso/16,MI300846, 91041º+STJ+e+a+dissolucao+parcial+de+Sociedade+por+acoes+fechadas - visto em 18.07.2019).

Alfredo de Assis Gonçalves Neto é advogado e professor titular aposentado de Direito Comercial da Universidade Federal do Paraná.

Revista Consultor Jurídico, 2 de setembro de 2019, 13h51

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