Para ajudar uma poderosa empresa norte-americana contra outra brasileira em recuperação judicial, a Procuradoria-Geral da República inaugurou uma tese: a de que não importa quem inventou algo primeiro, mas quem ganhou mais com a invenção. É no que consiste o parecer levado pelo órgão na última sexta-feira (15/7) ao Supremo Tribunal Federal, opinando sobre recurso da Gradiente contra a Apple. (VEJA O PARECER)
O processo, que teve repercussão geral reconhecida pela corte em março, discute a obrigação da Apple de indenizar a Gradiente pelo uso da marca iPhone, registrada pela brasileira em 2000, sete anos antes de a americana lançar seu celular de sucesso mundial. Como o Instituto Nacional de Propriedade Intelectual (INPI) só concedeu o registro da marca "G Gradiente iphone" à Gradiente em janeiro de 2008, um ano depois do lançamento do iPhone pela Apple, a PGR entende que a Gradiente simplesmente perdeu seu direito porque outra empresa o usurpou. O aparelho da Apple chegou ao Brasil em novembro do mesmo ano.
"Observa-se que o uso e a notoriedade são elementos essenciais para a caracterização da significação secundária (secondary meaning), o que faz com que o consumidor vincule determinado significado a um produto ou serviço em particular (distintividade)", diz o procurador-geral Augusto Aras em sua manifestação, relativizando o princípio da anterioridade, que prestigia o direito a quem inventa e toma a iniciativa de registrar sua invenção. "As funções desempenhadas pela marca fundamentam sua tutela e delimitam seu âmbito de proteção, cuja extensão não pode ultrapassar sua finalidade e sua natureza", explica o chefe do Ministério Público Federal. Para ele, o uso da marca, e não sua criação, é o que garante direito sobre ela, porque foi a Apple quem "tornou a expressão mundialmente reconhecida".
Os advogados da IGB Eletrônica S.A., dona da marca Gradiente, analisaram o parecer e já identificaram impropriedades. Segundo Igor Mauler Santiago, cuja especialidade na discussão de tributos inclusive pela Ordem dos Advogados do Brasil o levou a inúmeras atuações no Supremo Tribunal Federal, o parecer da PGR "transfere o ônus da demora no INPI à empresa brasileira, a única das três partes — IGB, Apple e INPI — cuja conduta não merece nenhuma censura", diz. "De fato, a IGB depositou a tempo e modo, sem que àquela altura houvesse qualquer conflito. O INPI demorou demais, e a Apple entrou no Brasil desrespeitando conscientemente uma marca depositada", resume.
Outra impropriedade apontada é o uso, no caso, do conceito de secundary meaning, termo técnico que descreve a aquisição, ao longo do tempo e em razão de um uso especial, de exclusividade sobre uma palavra de uso comum. Para Santiago, não se pode usar o conceito para um termo que não é genérico. "iPhone nunca foi sinônimo de smartphone", explica. O nome, lembra o advogado, "acabara de ser adotado pela Apple quando da concessão do registro da IGB, em 2008". A defesa também é feita pelo criminalista Antônio Carlos de Almeida Castro, o "Kakay", outro com longo histórico de sustentações no Supremo.
Como o caso teve repercussão geral reconhecida pelo STF, a PGR sabe que a decisão estabelecerá uma definição no entendimento sobre propriedade intelectual no país. E propõe a inauguração de uma tese: "A mora na concessão do registro de marca pelo INPI, concomitante ao surgimento de uso mundialmente consagrado da mesma marca por concorrente, mitiga o direito à exclusividade quando ensejar evidente confusão, a requerer a presença de elemento distintivo que preserve os direitos dos consumidores e demais agentes do mercado".
O entendimento contraria o adotado em outros países onde a mesma situação ocorreu, inclusive nos Estados Unidos, país-sede da Apple. Ainda em 2007, a empresa foi obrigada a fazer um acordo com a também americana Cisco, que já havia registrado a marca iPhone antes. Em 2012 foi a vez de a mexicana iFone vencer a Apple na Justiça do país, forçando um acordo financeiro.
RE 1.266.095 (relator ministro Dias Toffoli)