Sócio que
tira partido da situação de penúria de outro sócio numa negociação, sonegando
informações preciosas e faltando com a boa-fé negocial, incorre em dolo
acidental. Com esta conduta, pode ser obrigado, judicialmente, a reparar as perdas
da parte lesada, como prevê o artigo 146 do Código Civil.
Decisão do
TJ-RS condena sócio a indenizar o outro sócio enganado
Com a
prevalência deste entendimento, a maioria da 6ª Câmara Cível do Tribunal de
Justiça do Rio Grande do Sul confirmou sentença que redimensionou as bases
financeiras de um contrato de cessão de cotas em que o cedente saiu claramente
prejudicado na negociação. Afinal, além de "comprar" o discurso de
que a empresa estaria à beira da falência, ignorava negociações para sua venda
para uma multinacional, por valor estratosférico. Assim, acabou vendendo suas
cotas por um valor muito abaixo daquele pelo qual elas foram revendidas dias
depois.
O relator
das apelações, desembargador Niwton Carpes da Silva, disse que a prova acostada
aos autos evidencia que o autor da "ação de complemento de preço por dolo
ativo" foi lesado e ludibriado. E de forma mais intensa pelo sócio
responsável pela negociação, com quem mantinha relações de amizade e alguma
proximidade, pois este, ao esconder a venda da empresa, levou o autor a uma
"situação ridícula, social e financeiramente", justificando a
condenação dos réus em R$ 200 mil por danos morais.
Carpes não
descartou, igualmente, a incidência do dolo positivo e/ou negativo na conclusão
da negociação prejudicial levada a efeito, "pois o embuste, a enganação, a
omissão, a falsa informação e a astúcia dos réus foram suficientes e bastantes
para ilaquear [embaraçar] a manifestação de vontade livre do autor que, se
soubesse da realidade dos fatos e, principalmente, da negociação em curso da
empresa com a Companhia Americana, certamente o acordo seria celebrado em
outras bases"’, anotou no acórdão, confirmando os fundamentos da sentença.
Caso
concreto
Em julho de
2002, o empresário DZR, sócio dissidente da Indústria Riograndense de Óleos
Vegetais Ltda. (EMPRESA REQUERIDA), com sede na Comarca de Pelotas (RS),
ajuizou uma ação de dissolução parcial de sociedade limitada na 4ª Vara Cível
da comarca para apurar haveres e deixar a empresa. Detentor de 28% das cotas
sociais, ele já havia ingressado com pedido de retirada da sociedade em outubro
de 2001. Ele contava com mais de 70 anos, padecia de câncer e estava afastado
dos negócios, residindo na Argentina.
Em maio de
2006, o juízo local, considerando probabilidade do direito pleiteado, além da
idade avançada e o estado de saúde do autor, concedeu a antecipação de tutela.
Assim, determinou que a EMPRESA REQUERIDA pagasse R$ 405 mil por mês ao autor,
em 12 parcelas mensais, até montante calculado pela auditoria contratada pelas
partes. O não pagamento das parcelas levaria à cominação de multa diária no
valor de R$ 10 mil em favor do autor.
Inconformada,
a EMPRESA REQUERIDA entrou com recursos no Tribunal de Justiça gaúcho para
suspender a antecipação de tutela, mas a decisão acabou confirmada em mais de
uma oportunidade.
Em agosto
de 2007, a Justiça, enfim, determinou o cumprimento da decisão judicial. No mês
seguinte, premidos pela situação, um dos advogados e mais três representantes
da empresa procuraram o juiz que cuidava do caso à época para alertá-lo sobre
os reflexos financeiros de sua decisão. Em síntese, sustentaram que o
cumprimento da antecipação de tutela iria quebrar a empresa.
Sensível e
com a anuência do autor, o magistrado suspendeu temporariamente a decisão
antecipatória, para dar chance a uma composição amigável do litígio. A
composição, entretanto, não veio, pois a EMPRESA REQUERIDA queria rediscutir os
"valores incontroversos" reconhecidos pela Justiça e devidos ao sócio
retirante.
Cenário
tétrico
Em dezembro
de 2007, o também sócio SÓCIO OTAB viajou a Buenos Aires para negociar
diretamente com o SÓCIO DZR. Para se assegurar de que obteria um bom acordo
para cessão das cotas, Brito, segundo o acórdão, "pintou um cenário"
desesperador para a EMPRESA REQUERIDA; ou seja, passou ao sócio dissidente a
ideia de que a empresa se encontrava em estado pré-falimentar.
SÓCIO DZR,
beirando os 80 anos, doente terminal e vivendo de aluguel, não teve outra
escolha senão aceitar a proposta de R$ 3 milhões para ceder sua participação
societária, já que não conseguia receber os valores reconhecidos em juízo. As
duas partes assinaram, finalmente, a proposta de dissolução parcial da
sociedade — pondo fim à ação judicial — no dia 30 de janeiro de 2008. A
homologação judicial da dissolução, com a consequente cessão de cotas, ocorreu
no dia 20 de fevereiro.
Exatamente
dois dias após a formalização do negócio jurídico, o sócio dissidente soube,
pelo jornal Diário Popular, de Pelotas, que a EMPRESA REQUERIDA havia sido
vendida para o grupo americano NutraCea pela quantia de US$ 14 milhões. O
anúncio do negócio deixou claro que a família Amaral Brito, representada por
Osmar, já vinha "costurando" uma negociação com os norte-americanos
há algum tempo, informação omitida nas tratativas de cessão de cotas.
Omissão de
informações
Sentindo-se
lesado, SÓCIO DZR ajuizou ação de complemento de preço por dolo ativo e
omissivo na conclusão de negócio jurídico, violação da boa-fé e deveres
fiduciários, cumulada com indenização por danos morais — tudo em face da EMPRESA
REQUERIDA, de SÓCIO OTAB e dos demais sócios da família Amaral Brito. A data da
inicial: 26 de agosto de 2008.
Na peça, o
autor alegou que foi vítima dos réus, que omitiram informações sobre o negócio
que estava em andamento, fornecendo dados falsos sobre a situação financeira da
empresa, o que caracterizaria dolo acidental. Pediu a procedência da ação para
o pagamento da diferença entre o preço que recebeu por seus haveres sociais e o
preço que deveria ter recebido se sua cota fosse avaliada conforme o preço do
negócio entabulado, além da indenização por danos morais.
No curso da
ação, em 25 de maio de 2017, o autor veio a falecer. Ele foi substituído no
processo pelo filho herdeiro do SÓCIO OZR, M Z S, que detém a procuração
pública da viúva e dos demais irmãos.
Sentença
procedente
Decorridos
dez anos de tramitação processual, precisamente em 16 de agosto de 2018, a 1ª
Vara Cível de Pelotas julgou totalmente procedente a demanda. Para o juiz Paulo
Ivan Alves de Medeiros, ficou claro o dolo eventual por parte dos réus, o que
atrai a aplicação do artigo 146 do Código Civil: "O dolo acidental só
obriga à satisfação das perdas e danos, e é acidental quando, a seu despeito, o
negócio seria realizado, embora por outro modo". No caso concreto, não
caberia a invalidação do contrato, mas apenas a reparação do prejuízo
experimentado pela parte lesada, consistente no pagamento da diferença entre o
preço pago pelas cotas e seu real valor.
"Impõe-se,
assim, acolher o pedido de indenização por dano material, formulado na inicial.
Também procede a pretensão reparatória por dano moral. O autor, pessoa idosa e
com sérios problemas de saúde, foi vítima de uma manobra dos réus, que lhe
causou um prejuízo milionário, o qual certamente teve reflexos negativos de
ordem psicológica’", escreveu na sentença.
O juiz
condenou os réus, solidariamente, ao pagamento da diferença entre o valor da
cota-parte do autor, calculado com base no preço da venda da EMPRESA REQUERIDA,
e aquele ajustado no acordo celebrado nos autos da ação de dissolução parcial
de sociedade. E arbitrou a reparação moral em R$ 200 mil.
Jomar
Martins é correspondente da revista Consultor Jurídico no Rio Grande do Sul.
Revista
Consultor Jurídico, 23 de fevereiro de 2020, 7h05