Responsabilização X Desconsideração da Personalidade Jurídica
Lorena Ferreira Fernandes, 2o ano
Responsabilização
Se a sociedade empresária é um ente a quem a lei
reconhece – ou outorga - personalidade, para que através dela, se possa agir,
temos que é um benefício concedido pelo Estado. Não se pode admitir, portanto,
que o uso de um benefício se faça em prejuízo de terceiros. É evidente, que
embora sendo uma pessoa individualizada, titular de direitos e deveres, com
patrimônio próprio, para agir, a pessoa jurídica é dependente de seus
integrantes, em especial, de seus administradores.
Se, no exercício da administração social, o sócio
ou administrador age com abuso dos poderes que o ato constitutivo lhe confere
ou infringe a lei, fazendo mau uso da pessoa jurídica, trazendo prejuízo a
credores e terceiros, tais práticas devem ser coibidas.
Essas situações já atribuem responsabilidade
pessoal aos sócios e administradores, entre outros, como liquidantes e
prepostos. Esta possibilidade está inscrita em lei. O texto legal expõe uma
determinada circunstância e, na sua ocorrência, prevê a responsabilização do
agente ou sócio. Prova-se a ocorrência do fato registrado no dispositivo legal
e pode-se atingir o patrimônio pessoal, geralmente, de modo subsidiário, ou a
pessoa do sócio ou administrador.
É o caso, por exemplo, dos artigos 116,
parágrafo único, 117, 153, parágrafo 3º do 155, 158, 165, 238, 245, 246, 281,
282 da lei 6.404/76 (lei da S.A.), do artigo 32 da lei 11.101/05 (lei de
falências), do art. 135 do Código Tributário Nacional e, também, do artigo
1.016 do Código Civil. Nesses casos, o alcance do patrimônio pessoal dos
sócios, administradores ou terceiros, ou suas pessoas, é previsto em
situações especificadas em lei, que, em geral, pressupõem atos praticados
com abuso de poder ou infração legal, por isso denominado responsabilização.
A responsabilização por infração à lei ou
ao ato constitutivo ou por ato praticado com excesso de poder é legalmente
prevista, não necessitando aplicar-se a desconsideração da personalidade
jurídica, pois existe legislação específica a ser utilizada para atingir os
dirigentes sociais ou seus bens, inclusive reconhecida pelos artigos 592, II e
596 do CPC.
É preciso não se confundir a
responsabilização e a desconsideração. Ambas têm em comum o fato de buscar bens
no patrimônio pessoal dos responsáveis ou impor sanção aos sócios ou agentes
sociais, embora, em cada uma das possibilidades isso se dê de modo diverso. No
caso de responsabilização, basta a prova do ato previsto em lei e do prejuízo.
Na desconsideração é necessário provar que o ato do qual decorreu o prejuízo
foi abusivo, já que, em regra, a aparência é de legalidade.
Essa confusão está presente nos textos dos
artigos que prevêem a desconsideração no Código de Defesa do Consumidor e na
lei antitruste, demonstrando imprecisão técnica em sua redação. Neles, o
legislador arrola como desconsideração várias condutas que correspondem, na
verdade, à responsabilização.
Veja-se: excesso de poder, infração à lei, fato
ou ato ilícito, violação dos estatutos ou contrato social, falência, estado de
insolvência, encerramento ou inatividade provocados por má administração ou
sempre que a personalidade jurídica for, de alguma forma, obstáculo ao
ressarcimento de prejuízos aos consumidores.
Já em primeira constatação, é fácil reconhecer a
redundância do legislador consumerista, vez que as hipóteses de violação do
estatuto ou contrato social vão estar agasalhadas pela figura de excesso de
poder, do mesmo modo que o fato ou ato ilícito e o encerramento ou inatividade
irregulares cabem na infração à lei.
Ressalve-se que a confusão não se limita a considerar
caso de desconsideração o que é responsabilização, mas, também, quando menciona
a falência, o estado de insolvência, a má administração ou sempre que
a personalidade jurídica for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de
prejuízos aos consumidores, posto que, desse modo, está-se derrogando a
limitação da responsabilidade e a personalidade jurídica como um todo.
Sabe-se, empiricamente, que, em grande
parte, os casos de insucesso da atividade empresarial se devem à má
administração, já que nenhum tipo de preparo é oferecido àqueles que desejam
empreender em nosso país. Tal situação se torna ainda mais crítica devido ao
fato de muitos não disporem de alternativa ante um mercado de trabalho
retraído, como ocorre entre nós, na atualidade. Sendo a esmagadora maioria das
empresas brasileiras constituída de micro e pequenas empresas, muitas são titularizadas
por indivíduos excluídos dos postos formais de trabalho, que utilizam seus
recursos de FGTS (Fundo de Garantia por Tempo de Serviço), amealhados ao longo
de toda uma vida laboral, para iniciarem-se na atividade empresarial,
tencionando ganharem a vida e o sustento da família, sem nenhum preparo,
repita-se.
Outro caso equivocado, a nosso ver, é o do artigo
82 da nova lei de falências, que prevê a responsabilização de sócios de
responsabilidade limitada, controladores e administradores de sociedade falida,
independentemente da prova de insuficiência de ativo, pois também ignora
o princípio da limitação da responsabilidade. O citado artigo 596 do código de
rito expressa que a responsabilidade dos sócios é sempre subsidiária. O artigo
82 da lei 11.101/05 parte da má-fé dos sócios, o que é sempre condenável,
mormente num sistema falimentar que, há muito, deixou de ser punitivo e
infamante. Além disso, alcançando-se os bens dos sócios de maneira prévia, é
provável que haja, ao final, saldo positivo para ser devolvido aos titulares
das quotas sociais. Ora, pelo menos outros dois princípios, agora de ordem
processual, estão sendo também ignorados: o da economia processual e o da
execução menos gravosa.
A Desconsideração da Personalidade Jurídica
Para as situações que a lei não consegue prever,
casuisticamente, nas quais o benefício da pessoa jurídica é mal utilizado,
tendo como objetivo conseguir uma vantagem indevida em detrimento de prejuízo
causado a terceiro, elaborou-se a desconsideração da personalidade jurídica. Em
casos tais, há, como mencionado, uma legalidade aparente.
Também chamada teoria da penetração ou teoria da
superação, surgiu em 1897, na Inglaterra, para se atingir o patrimônio dos
sócios ou administradores envolvidos, em circunstância excepcional, mesmo que o
tipo social previsse a responsabilidade limitada.
Entre nós, Rubens Requião foi o primeiro a
levantar a questão, autorizando sua utilização:
- “Diante do abuso de direito e da fraude no uso da
personalidade jurídica, o Juiz brasileiro, tem o direito de indagar, em seu
livre convencimento, se há de consagrar a fraude ou o abuso de direito, ou se
deva desprezar a personalidade jurídica, para penetrando em seu âmago, alcançar
as pessoas e bens que dentro dela se escondem para fins ilícitos ou abusivos.”
A aplicação dessa teoria tem o objetivo, como já
se disse, impedir que a personalidade jurídica seja instrumento de impunidade a
abusos. É o que ensina Lamartine Correa:
- “Se é em verdade uma outra pessoa que está a
agir, utilizando a pessoa jurídica como escudo, e se é essa utilização da
pessoa jurídica, fora de sua função, que está tornando possível o resultado
contrário à lei, ao contrato, ou às coordenadas axiológicas fundamentais da
ordem jurídica (bons costumes, ordem pública), é necessário fazer com que a
imputação se faça com predomínio da realidade sobre a aparência.”
Porém, para sua aplicação não basta, por
exemplo, a insolvência da sociedade. É necessário que tal fato tenha
decorrido do mau uso da pessoa jurídica. É preciso cautela e critério na
sua aplicação.
Há inclusive os que entendiam, antes do
Código Civil – mas posterior a outros diplomas legislativos que adotavam a
desconsideração – que não se deve aplicar a doutrina da desconsideração porque
não existe nenhuma forma jurídica que deva ser desprezada pelo juiz.
O direito brasileiro permite a utilização da
desconsideração nos termos do artigo 28 da lei nº 8.078/90 (Código de Defesa do
Consumidor), do artigo 18 da lei nº 8.884/94 (lei antitruste) – praticamente
cópia literal do texto do CDC; ambos ainda que eivados de imprecisão técnica,
como observado -, do artigo 4º da lei 9.605/98 (lei do meio ambiente) e do
artigo 50 do Código Civil.
A aplicação da teoria vinha sendo reconhecida
pela doutrina e jurisprudência e independia de previsão legal. Ficava - como
fica - porém, sempre condicionada à apreciação judicial.
O espírito da desconsideração foi
também incorporado pela lei nº 8.429/92, no artigo 12, superando, de modo
inverso, a personalidade jurídica para alcançar a empresa impedindo-a de
contratar com o Poder Público, caso mantenha em seus quadros administrador,
sócio ou controlador que tenha praticado ato de improbidade administrativa.
Também há exemplo da desconsideração inversa na Lei do Sistema Financeiro (Lei
nº 4.595/64), que proíbe certos negócios ou operações de serem efetuados entre
a instituição financeira e pessoas jurídicas cujo capital tenha sido, de modo
majoritário, constituído pelos administradores daquela instituição. A mesma lei
responsabiliza, solidariamente, diretores e gerentes das instituições
financeiras pelas obrigações assumidas pelas mesmas durante suas gestões.
A desconsideração inversa também tem sido
apontada como solução em lides de separação ou divórcio, como informa Fábio
Ulhoa Coelho.
O mesmo espírito da teoria da
desconsideração da personalidade jurídica está presente em outros diplomas
legais, dos quais ainda serve de exemplo, além dos acima citados, a
Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), em seu artigo 2º, § 2º, no qual é
prevista a responsabilidade solidária, para efeitos de relação empregatícia, da
empresa principal e subordinadas, quando constituam um grupo econômico.
Mas, como há previsão específica na lei, trata-se de responsabilização. Muito
embora o grupo de sociedades dependa de formalização entre as integrantes do
grupo e posterior arquivamento na Junta Comercial, a legislação trabalhista, no
artigo citado, se refere a grupo econômico, o que, tecnicamente, pode
ser entendido de modo diverso do termo grupo de sociedades. Então, mesmo
que não haja convenção registrada formalizando o grupo, nos termos do artigo
265 e seguintes da lei 6.404/76, a solidariedade na responsabilização por
dívidas trabalhistas seria legítima. Não se exige a prova da fraude ou do
abuso, desde que provada a lesão ao direito do empregado.
A Justiça do Trabalho também é pródiga em
decisões, já constituindo entendimento cristalizado, que a personalidade jurídica
do empregador deve ser desconsiderada e os bens dos membros sociais alcançados sempre
para a satisfação do crédito trabalhista, quando a empresa não possuir
patrimônio suficiente, mesmo na ausência de fraude ou abuso. A Justiça do
Trabalho, na prática, ignora a personalidade jurídica e não reconhece a
separação patrimonial e a limitação da responsabilidade.
Esse posicionamento é, no entanto,
equivocado porque, como regra, compromete o instituto da personalidade
jurídica e o princípio da autonomia patrimonial. A desconsideração é
válida apenas enquanto tem o intuito de preservar a pessoa jurídica e
sua autonomia, já que ambos são instrumentos indispensáveis à organização da
atividade econômica, sem deixar ao desabrigo terceiros vítimas de fraude.
No anteprojeto do Código Civil (Projeto de
Lei nº 634-B), a previsão de elevar-se a teoria à legislação, se dava na
seguinte redação:
- “art. 50 – a pessoa jurídica não pode ser desviada
dos fins estabelecidos no ato constitutivo para servir de instrumento ou
cobertura à prática de atos ilícitos ou abusivos, caso em que poderá o juiz, a
requerimento de qualquer dos sócios ou do ministério público decretar a
exclusão do sócio responsável, ou, tais sejam as circunstâncias, a dissolução
da sociedade. Parágrafo único – Neste caso, sem prejuízo de outras sanções
cabíveis, responderão conjuntamente com os da pessoa jurídica, os bens pessoais
do administrador ou representante que dela se houver utilizado de maneira
fraudulenta ou abusiva, salvo se norma especial determinar responsabilidade
solidária de todos os membros da administração”.
A pena de exclusão do sócio ou de dissolução da
sociedade, não são conseqüências, originariamente, previstas na disregard
doctrine.
Pela imprecisão dos termos, o texto, na
versão final, foi bastante reduzido, traçando critérios objetivos
(desvio de finalidade e confusão patrimonial) para que o juiz aplique ou não a
desconsideração no caso concreto.
A finalidade da desconsideração é afastar,
momentaneamente, a personalidade jurídica da sociedade, para atingir os sócios
ou administradores ou seus bens, caso tenham agido com abuso ou má-fé,
prejudicando terceiros. A simples insolvência, decorrente de atos
praticados dentro da normalidade administrativa de uma sociedade não
autoriza a desconsideração.
São pressupostos de sua aplicação a
existência de mau-uso da pessoa jurídica (agora traduzido em desvio da
finalidade ou confusão patrimonial), a ausência de patrimônio social e a
autorização judicial para que se entre no patrimônio pessoal dos sócios. Na
desconsideração inversa, não se exige a existência de dívidas, mas, sim, a
prática de atos condenados legalmente.
O que ocorre, na prática, então, é que para aquele
caso isolado, e apenas para ele, de modo transitório e episódico, ignora-se a existência
da pessoa jurídica e, portanto, os princípios da separação patrimonial e da
limitação da responsabilidade, para que o credor seja satisfeito ou a sanção
seja aplicada, sempre atentando-se para o implemento dos requisitos de
aplicação. Para tudo o mais, concomitantemente, a personalidade jurídica não
sofre qualquer abalo.
Por isso, somos de opinião que referir-se a essa
possibilidade pelos termos descaracterização ou desconstituição
da pessoa jurídica não atende à essência da técnica. Tais expressões estariam
mais próximas da despersonalização, outra medida que pode ser facilmente
confundida com a desconsideração.
Enquanto a desconsideração pressupõe a existência
de débitos decorrentes da má utilização da pessoa jurídica que a sociedade não
tem condições de suportar e, por isso, para o episódio, a personalidade
jurídica é, momentaneamente, afastada, a despersonalização é utilizada para pôr
fim à pessoa jurídica, em situações decorrentes também do mau uso, mas que
não envolvem, necessariamente, débitos, ou seja, quando a empresa da pessoa
jurídica vem sendo desenvolvida de modo a causar danos de massa, causando
prejuízos à concorrência ou meio ambiente ou aos consumidores ou ao mercado,
por exemplo. Geralmente, há um agravamento de penalidades a serem aplicadas
nesses casos, que não sendo suficientes para coibir a conduta danosa da
sociedade empresária, pode chegar à determinação de extinção da empresa.
Bem assim, embora cientes de que tal determinação
pode ser vista como pena para a sociedade transgressora e que o direito penal
não comporta interpretação extensiva da lei, sustentamos que, aplicadas
todas as medidas possíveis, previstas na legislação antitruste, se nenhuma
delas foi capaz de modificar a atuação danosa da sociedade, o CADE
(Conselho Administrativo de Defesa Econômica) tem permissão, observadas as
circunstâncias mencionadas no artigo 27 da lei 8.884/94, de impor a
despersonalização, porque, o que se quer, na verdade, não é a punição da
sociedade, mas a salvaguarda do mercado, das relações de consumo, da livre
concorrência, enfim, a preservação da higidez do mercado O texto do artigo
24 prevê que, ante a gravidade dos fatos ou em nome do interesse público geral,
o CADE pode impor “qualquer outro ato ou providência necessários para a eliminação
dos efeitos nocivos à ordem econômica.”
Voltando à desconsideração, Fábio Ulhoa Coelho
faz toda uma elaboração sobre as teorias - maior e menor - dela decorrentes e
elucida como pode ser vista como um instrumento de socialização das perdas para
manter preços, o que interessa a todos.
Marçal Justen Filho também já diferenciava a
intensidade da desconsideração em máxima, que corresponderia à teoria menor de
Fábio Ulhoa Coelho, média e mínima, correlata à teoria maior, para concluir,
com Lamartine Correa, que a última é a “única compatível com o conceito de
desconsideração”.
Fonte:
http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=2769