É com grande satisfação que, em atenção ao honroso
convite do professor Otávio Luiz Rodrigues Jr., contribuímos para esta
prestigiosa coluna, mantida pela Rede de Pesquisa de Direito Civil
Contemporâneo.
A metadogmática transcende a dogmática[1]
na sua objetividade, referindo-se, contudo, a categorias e conceitos
dogmáticos. O termo é empregado, no contexto de uma metódica (teoria do
método), para designar um produto da interpretação (possivelmente para fins de
atualização do direito), que expresse uma visão externa do fenômeno jurídico,
às vezes voltada à aplicação da norma, mas sempre dedicada a uma reflexão que
confronta fatores exógenos aos dogmáticos.[2]
Qualquer rearranjo programático (do âmbito, das funções ou das técnicas) de uma
disciplina jurídica, que produza um resultado dogmático, pressupõe um diálogo
entre política do direito e dogmática, que é próprio da metadogmática.
Uma metadogmática do direito comercial propõe, por
exemplo, à porção da ciência objetiva do direito que caracteriza o direito
comercial, um objeto, funções e técnicas, sem dizer a norma em seu conteúdo
objetivo (mesmo que da proposta decorra um conteúdo).
Este artigo, dividido em quatro partes, expressa,
nos itens II a IV, proposições próprias do discurso metadogmático, quer prestar
alguma contribuição ao debate atual sobre o conteúdo do direito comercial, na
medida em que as conclusões aqui expressas o antecedem, capazes, bem por isso,
de inculcar impressões acerca dos seus caminhos.
O que é e para que serve o direito comercial
1. O
direito comercial é o “direito privado externo da empresa”.[3]
Não é, bem por isso, o estatuto jurídico da empresa, ainda que na empresa se
funde o seu objeto. O direito comercial disciplina parte do fenômeno
empresarial, que se secionou, para fins de regramento, por expurgos ideológicos
e pela afirmação histórica de especialidades.
O regramento da empresa, que se refere a um
direito interno (organização) e a um direito externo (exercício) da empresa,
não é disciplina autônoma, mesmo que a empresa se converta crescentemente em
uma categoria jurídica de grande força atrativa. Do seu regramento já se ocupam
o direito comercial, o direito societário, e porções de outras ramas, a exemplo
do direito econômico, do direito do consumo e do direito do trabalho.
2. A empresa, que corresponde – em quaisquer
hipóteses conceituais – a uma fattispecie amplíssima, foi concebida, sob
o espírito da regulação total[4],
para desbordar os limites de um claudicante embate histórico-programático[5];
revolucionou a matriz regulatória do direito comercial, por meio da superação
das velhas doutrinas objetivista e subjetivista, mas, sobretudo, por uma
drástica restrição, combinada com paradoxal e majoritária contenção da
autonomia privada.[6]
A empresa é, nesse sentido, uma poderosa técnica de intervenção estatal na
economia. A sua disciplina determina, paradoxalmente, as maiores restrições à
autonomia privada e, ao mesmo tempo, boa parte do âmbito da autonomia privada.
[1] “A ciência do direito em sentido estrito, a
ciência dogmática e sistemática do direito (Jurisprudência), é a ciência do sentido
objetivo do direito positivo [...] É a ciência do sentido objetivo do
direito positivo, nisto se distinguindo, sucessivamente: da História do
direito, da Ciência comparativa do direito, da Sociologia e
da Psicologia jurídicas as quais têm por objecto o ser do direito e os factos
da vida jurídica”. Cf. Radbruch, G. A Filosofia do Direito. Coimbra:
Armênio Armando, 1997, p. 395.
[2] Cf. SCHULZE-FIELIZ, H. “Das
Bundesverfassungsgericht in der Krise des Zeitgeists – Zur Metadogmatik der
Verfassungsinterpretation.” Archiv des Öffentlichen Rechts, Vol. 222,
1997, pp. 1-31.
[3] Essa assertiva caracteriza a chamada Neokonzeption
des Handelsrechts. É compatível com o nosso modelo, porque atribui à
empresa – a exemplo do que já se dá em nosso ordenamento – a condição de
categoria jurídica estruturante do direito comercial alemão (mesmo que, naquele
país, ainda não a tenham positivado). Isso se reforça pelos sucessivos expurgos
que apartaram do nosso direito comercial a disciplina de porções significativas
do fenômeno empresarial. Para uma descrição pormenorizada dessa noção, cf.
SCHMIDT, K. Handelsrecht. 5. Aufl., Köln, Berlin, Bonn, München:
Heymann, 1999, §3.
[4] Regulação total. A empresa é, em primeiro
lugar, uma técnica regulatória. Decorre do desejo de engendrar um regramento de
toda a atividade econômica, na certeza de que sua importância exorbita o espaço
privado (i.e., o âmbito da autoconfiguração (Selbstgestaltung) das
relações jurídicas por particulares), à produção de efeitos que interessam o
público e que, por isso, devem ser – sob um modelo de economia normativa –
submetidos pela ordem jurídica total. A ideia de um “direito da atividade
econômica” se torna plausível na Alemanha de Weimar, em meio a uma forte
degradação da economia e em resposta às suas causas precípuas, invariavelmente
associadas ao oportunismo dos agentes de mercado e à ampla liberdade de que se
beneficiavam. Cf. Hedemann, J. W.
Deutsches Wirtschaftsrecht: Ein
Grundriess. Berlin: Junker & Dünnhaupt, 1939. Nesse contexto, a
empresa, que já era objeto de especulação doutrinária, afirmou-se como
conveniente técnica de intervenção do Estado na economia.
[nota 4-I] Origens. O pensamento jurídico de
tradição germânica já trabalhava, nos meados do século XIX, uma noção de
empresa, sem se dar conta da amplitude e da importância de seu emprego futuro.
A Geschäft, como propôs Endemann, era um organismo – afetado pelo lucro
– para transcender os seus criadores. Cf. ENDEMANN, W. Das Deutsche
Handelsrecht. Systematisch dargestellt. 2. Aufl. Heidelberg, 1868. § 15, p.
76 et seq. Autores como Hedemann, articulando essa forte orientação
subjetivista ao interesse de dispor de uma técnica regulatória de amplíssimo
espectro, propuseram que a empresa substituísse a pessoa jurídica. Cf.
HEDEMANN, J. W. Das bürgerliche Recht und die neue Zeit, 1919, p. 17.
Seria, todavia, na condição de objeto unitário de negócios, sob a influência de
Von Ohmeyer, Pisko e Isay, que a empresa permitiria, mais tarde, um maior
avanço dogmático. Cf. OHMEYER, K. E. von. Das Unternehmen als Rechtsobjekt.
Mit einer systematischen Darstellung der Spruchpraxis betreffend die Exekution
auf Unternehmen. Wien: Manz, 1906. p. 8 et seq; PISKO, O. Das
Unternehmen als Gegenstand des Rechtsverkers. Wien: Manz, 1907. p. 46 et
seq.; ISAY, R. Das Recht am Unternehmen. Berlin: Vahlen, 1910. p. 12 et
seq.
[nota 4-II] Polissemia e variância tônica: do
perfil subjetivo ao núcleo defletor de interesses. É certo, como nos dá
conta Asquini, que na virada do século e ainda nas duas primeiras décadas do
século XX, prevalecia, entre os muitos sentidos de empresa, um perfil
subjetivo, sob a forte influência dos pais do Direito Econômico. Cf. Asquini,
A. Profili dell’ Impresa. Rivista del Diritto Commerciale e del Diritto
Generale delle Obbligazioni, Milano: Francesco Vallardi, v. 41, pt. 1,
1943. O perfil prevalentemente subjetivo, que se deflagrava pela intenção
originária de suplantar a pessoa jurídica, sofreria ajustes, até que o conceito
de empresa evoluísse em complexidade, permeado por influxos ideológicos e por
interesses públicos, afirmando-se, ao fim, já nos anos 1940, um traço funcional
mais acentuado, que se sente na conjunção das ideias de organização, afetação
(função) e atividade. Note-se, para explicar esse ajuste conceitual, que as
mais adiantadas reflexões sobre a empresa iriam tratá-la, a partir dos anos
1930 e especialmente no auge do regime nacional-socialista, como especial
núcleo defletor de interesses; assumiria a tarefa de introduzir importantes
influxos ideológicos no ordenamento, a exemplo do que se tentou por meio da
doutrina do Unternehmen an sich. Cf. Rathenau, W. Vom Aktienwesen:
Eine Geschäftlische Betrachtung g. Berlin: Fischer Verlag, 1917; NETTER, O.
“Zur aktienrechtlichen Theorie des ‘Unternehmens an sich’”. JWI, p.
2953-2956, 1927; “Gesellschaftsinteresse und Interessenpolitik in der
Aktiengesellschaft”. Bank-Archiv, v. 30, 1930-1931, p. 57-65 e 86-95.
Para uma visão histórica desse processo, mesmo que algo distorcida, JAEGER, P.
G. L’interesse sociale. Milano: Giuffrè, 1964. p. 17 et seq. E superado,
com a queda do Reich, um tom demasiado publicista (que inspirou, em 1937, as
reformas da Aktiengesetz), à empresa remanesceria o sentido de centro de
interesses ou de valores distintos daqueles dos seus suportes humanos, à
afirmação de um Unternehmensinteresse, instruído por clamores de uma
variada gama de “grupos de pressão” e, antes deles, por interesses de Estado
(cf., nesse sentido, todas as leis que introduziram a participação operária nos
órgãos de direção da macroempresa societária alemã, i.e., a Gesetz über die
Mitbestimmung der Arbeitnehmer in die Aufsichtsraten und Vorstanden der
Unternehmen des Berghaus und der Eisen und Stahl erzeugende Industrie (MontaMitbestG
1951), a Betriebsverfassungsgesetz de 1952 e a gesetz über die
Mitbestimmung der Arbeitnehmer (MitbestG) de 1976). Deve-se lembrar,
contudo, que, curiosamente, a empresa não é uma categoria jurisdicizada pelo
direito alemão atual, para o qual o direito comercial ainda é o direito das
“pessoas do comércio” (Recht der Kaufleute). Cf. HOFMANN, P. Handelsrecht,
11. Aufl., Berlin: Luchterhand, 2002, ROTH, G.H. Handels- und Gesellschaftsrecht,
6. Aufl., München: Vahlen, 2001, §1, 1c. Daí por que à concepção tradicional se
opõe uma Neokonzeption des Handelsrechts. Cf. SCHMIDT, K. Handelsrecht...,
op. cit., §3. Para um conceito de empresa influente na Alemanha atual, cf.
RAISCH, P. Geschichliche Voraussetzungen, dogmatische Grundlagen und
Sinnwandlung des Handeslrechts, Karlsruhe: C. F. Müller, 1965, p. 119 et seq.
[nota 4-III] A difusão da empresa como técnica
regulatória e a empresa no Brasil. Essas ideias influenciariam, alicerçadas
em modelo de Estado, um grande número de ordenamentos nacionais. A Itália de
Mussolini, em vista de sua proximidade com a Alemanha nazista, atribuiu à
empresa a condição de conceito estruturante para a matriz regulatória que se
deduz do Codice Civile de 1942. Outros países, em meio a um projeto de
ampliação do Estado, também encontraram na empresa uma conveniente ferramenta.
Célebres comercialistas, a exemplo de Frederiq e VanRyn, cogitaram mesmo uma
absorção do direito comercial pelo direito econômico, senão a sua completa
superação, pelo advento de uma nova disciplina centrada na empresa como
categoria fundamental. Cf. Frederiq, L. Traité de Droit Commercial Belge.
V. 1, Gand: Rombaut-Fecheyr, 1946, p. 22; VanRyn, J. Principes de Droit
Commercial. Bruxelles: Bruylant, 1954, p. 12. Bem por isso, no direito
francês, também, a empresa exerce, até hoje, papel fundamental. Cf. Georges. Traité
Élémentaire de Droit Commercial. 2. éd. Paris: LGDJ, 1951, p. 6 et seq.
Nisso tudo, em especial no direito italiano, inspirou-se o nosso Código Civil,
onde a norma do artigo 966, assim como a do artigo 2.082 do Codice Civile,
não conceitua a empresa, senão por meio da definição de empresário. Entre nós,
a empresa, para além de todas as funções regulatórias já referidas, proveu, em
meio à suposta unificação do direito privado, uma especialização mínima,
indispensável à distinção de fenômenos econômicos e de sua disciplina jurídica.
A empresa é a atividade econômica, que decorre da organização e do emprego de
elementos de produção, pelo empresário (individual ou sociedade empresária), em
caráter profissional, para a produção ou à circulação de bens e de serviços,
nos mercados. A ideia de afetação empresarial serve para distinguir, nesse
contexto, como se disse, de todos os demais, os fenômenos econômicos sujeitos a
um regramento particular. Cf. Broseta Pont, M. La Empresa, la Unificacion
del Derecho de Obligaciones y el Derecho Mercantil. Madrid: Editorial
Tecnos, 1965.
[5] A jurisdicização da empresa e o seu emprego como
técnica regulatória ofertavam, para além de ampla cobertura da atividade
econômica, um providencial efeito reflexo, capaz de superar a controvérsia
original entre as concepções subjetiva e objetiva. A vertente subjetivista,
mais antiga e de inspiração corporativa, tinha no direito comercial uma
disciplina jurídica de classe profissional. Cf. Bracco, R. L’Impresa nel
Sistema del Diritto Commerciale. Padova: CEDAM, 1960, p. 26 et seq.
O objetivismo, defendido por autores do século XIX, restringia a atuação do
direito comercial ao regramento dos atos de comércio. Sobre o processo de
“objetivação” e expansão do direito comercial, intrinsecamente relacionado com
a Revolução Industrial e a produção em massa, cf. Ascarelli, T. Iniciación
al Estudio del Derecho Mercantil. Barcelona: Bosch, 1964, p. 101. A noção
de ato de comércio, de um lado, seria – no contexto da empresa – absorvida pela
ideia de atividade e, de outro lado, o foco das atenções deixaria de ser a
conduta do comerciante, substituído pelo empresário. Em verdade, foi a natureza
multifária e polissêmica da empresa que pacificou a antiga disputa pelo objeto
do direito comercial (não sem ensejar, como veremos, novas controvérsias); a
amplitude e plasticidade conceitual da empresa abrangeu todos os objetos
programáticos até então atribuídos ao direito comercial. É certo que a
transposição de tonicidade de um perfil a outro, especialmente a pendularidade
subjetivo-funcional, proveria argumentos para acusações de uma superação
putativa das velhas concepções subjetiva e objetiva. Cf. Fanelli, G. Introduzione
alla Teoria Giuridica dell’Impresa. Milano: Giuffrè, 1950.
[6] Não sem razões, Asquini, já nos anos 1940,
lecionava sobre um hibridismo público-privado do regramento da empresa. Cf.
ASQuini, A. “Una Svolta Storica nel Diritto Commerciale”. Rivista del
Diritto Commerciale e del Diritto Generale delle Obbligazioni, Milano:
Francesco Vallardi, v. 38, pt. 1, 1940, p. 514.
Walfrido Jorge Warde Jr é advogado, bacharel
em Direito pela USP e em filosofia pela FFLCH-USP, LLM pela New York University
School of Law e doutor em Direito Comercial pela USP
Jose Luiz Bayeux Neto é advogado, bacharel e
mestre em Direito Civil pela USP e professor de Direito Comercial do Mackenzie