terça-feira, 29 de outubro de 2013

Do pagamento de dívida de jogo com cheque



Aluno: Alfeu Paulo da Silva Júnior

Introdução

É de saber amplo e notório que as dívidas originárias de jogo e aposta são consideradas dívidas naturais e, como tais, não obrigam ao pagamento. Contudo, também é certo que tais débitos, uma vez pagos, são irrepetíveis (não podem ser recobrados). Com o presente estudo, pretende-se demonstrar que, uma vez que tais dívidas sejam quitadas com um cheque, é lícito que este seja executado judicialmente, haja vista que o pagamento já ocorreu e não há que se discutir eventual vício no título.

Do jogo e da aposta

Embora o jogo e a aposta possuam a mesma disciplina jurídica, são duas espécies distintas de contratos, com elementos caracterizadores próprios.
Enquanto o jogo se relaciona à prática de atividade intelectual ou física de uma pessoa, a aposta se coaduna com opiniões divergentes acerca de determinado assunto ou evento. Naquele, as partes desempenham um papel no resultado, enquanto neste, o acontecimento opiniativo está alheio à atividade dos apostadores (é incerto).

Preconiza Sílvio de Salvo Venosa (2003, p. 411):


“Jogo é o contrato por meio do qual duas ou mais pessoas obrigam-se a pagar determinada quantia ou coisa diferente de dinheiro àquele que resultar vencedor na prática de atividade intelectual ou física. No jogo, a soma prometida parte dos próprios participantes da atividade lúdica. Aposta é o contrato pelo qual duas ou mais pessoas prometem soma ou equivalente em razão de opinião sobre determinado assunto, fato natural ou ato de terceiros. Credor da aposta será aquele cuja opinião coincidir com o que for considerado real ou verdadeiro”.

E complementa o saudoso Sílvio Rodrigues (1991, p. 391):


“O jogo é o ajuste pelo qual duas ou mais pessoas se obrigam a pagar certa soma àquela que resulte vencedora na prática de determinado ato, a que todos se entregam. A aposta é o ajuste que duas ou mais pessoas, de opinião diferente sobre qualquer assunto, concordam em perder certa soma, ou certo objeto, em favor daquela, entre as contraentes, cuja opinião se verificar verdadeira”.


Por derradeiro, quanto à distinção entre tais negócios bilaterais, aclara Arnaldo Rizzardo (2009):


“Pelo contrato de jogo, há participação dos contratantes, da qual depende o resultado, isto é, o ganho ou a perda. Cada uma das pessoas entrega à outra certa soma em dinheiro ou um objeto determinado, comprometendo-se a perder o bem em favor da vencedora, dependendo o resultado da atividade a ser disputada pelas próprias partes. A ação dos envolvidos é o elemento essencial para a caracterização. Já na aposta, os disputantes não participam ou influem no ganho ou na perda, ou no acontecimento que determinará o resultado. Não há influência dos mesmos na realização do evento. A distinção está no motivo que dirige as vontades. Enquanto no jogo sobreleva o propósito de distração ou ganho e participação dos contendores, na aposta tem destaque o sentido de uma afirmação a par de uma simples expectativa”. 


Da natureza jurídica da obrigação decorrente de jogo ou aposta

Num primeiro, para se avaliar as conseqüências jurídicas decorrentes dos contratos de jogo ou aposta, é preciso se perquirir se tais negócios são legais ou regulamentados ou tidos como ilícitos ou simplesmente tolerados.

Quando se depara com um jogo ou uma aposta regulamentada, é certo que a dívida originária facultará livremente o ingresso em juízo para a sua cobrança. Trata-se de uma obrigação como qualquer outra. Entretanto, quando se avalia um jogo uma aposta simplesmente tolerada, encontra-se diante de uma obrigação natural, em que se resta aplicável o artigo 814 do Código Civil. In verbis:


“As dívidas de jogo ou de aposta não obrigam o pagamento; mas não se pode recobrar a quantia, que voluntariamente se pagou, salvo se foi ganha por dolo, ou se o perdente é menor ou interdito”.


O diploma civil não deixa dúvidas de que as dívidas decorrentes de jogo e/ou aposta não obrigam o pagamento. Subsiste o débito, mas não a responsabilidade como elemento da obrigação. Nos dizeres de Venosa (2003, p. 412), “são créditos sem pretensão”.

Contudo, há um efeito deveras importante cominado em nossa legislação: não obstante a dívida não possua ação de cobrança correspondente, caso haja o pagamento, inexiste o direito de repetição. Noutras palavras, não subsiste o direito de reaver ou recobrar aquilo que fora pago em conseqüência de jogo ou aposta. Considera-se, simplesmente, que um débito válido fora quitado.

Novamente consoante os dizeres de Sílvio Rodrigues (1991, p. 392):


“Se o solvens voluntariamente entrega ao accipines a importância perdida, não lhe cabe o direito de repetir, pois que tal pagamento, embora inexigível, não era indevido”.


Complementados por Carlos Roberto Gonçalves (2002, p. 11):


“Uma vez que procedida à prestação do débito, bem assim tenha sido levada a efeito de forma espontânea e por pessoa capaz, não poderá repetir o que se pagou”.


O cheque como título executivo extrajudicial

O cheque se caracteriza como um título executivo extrajudicial e, de acordo com a legislação processual em vigor (bem como a Lei do Cheque – 7.357/85), faculta o ajuizamento de execução, independentemente da origem da dívida.

O cheque, como título executivo extrajudicial e título de crédito, figura como o documento necessário para o exercício de direito literal e autônomo nele representado – não se relaciona, assim, ao evento que lhe deu origem.

Por Gisele Leite (2007):


“É, pois, documento necessário para o exercício do direito literal e autônomo nele representado. É corporificado num instrumento que passa a ter características próprias como a cartularidade, a autonomia, a literalidade. (...) A representação de um direito como um título executivo em nada interfere na dinâmica de tal critério na esfera substancial”.


O cheque é uma ordem de pagamento à vista, regulamentada pelo Decreto nº 57.595/66, em seu artigo 28. Uma vez emitido um cheque, deverá ser pago à vista pela instituição bancária respectiva.

Da possibilidade de cobrança (execução) de cheque dado em pagamento de dívida de jogo ou aposta

Como exposto, as dívidas decorrentes de jogo ou aposta são consideradas como obrigações naturais – o débito existe, mas não há como coagir o devedor a quitá-lo. Ademais, embora não sejam juridicamente exigíveis, uma vez pagas, não facultam o direito de repetição. A lei reputa válido e perfeito o pagamento de obrigação natural realizado por pessoa capaz (obviamente excepcionados os casos de dolo e coação).

Por outro lado, também se explanou que o cheque, título de crédito, é considerado ordem de pagamento à vista, com característica de literalidade e autonomia, completamente desvinculado à dívida que lhe deu origem.

Assim, parece inegável que se o cheque for dado como pagamento de dívida de jogo ou aposta deverá ser pago. Conseqüentemente, em não tendo suficiente provisão de fundos ou até mesmo em caso de sustação, poderá o portador ou o beneficiário se valer da ação de execução de título executivo extrajudicial e até mesmo de ação de cobrança (locupletamento ilícito) em eventual hipótese de prescrição.

Explicamos.

O simples recebimento do cheque, por parte do portador, significa pagamento. E o credor tem o direito de receber o título de crédito que porta. O emitente do cheque, então devedor de uma obrigação natural, não poderá alegar que não deve. O devedor realizou o pagamento e, em sendo este irrepetível, não poderá se valer de subterfúgios objetivando comprovar um vício no cheque.

O cheque emitido é tão somente um pagamento. Em sendo a cártula dotada de literalidade e autonomia, simplesmente perde qualquer relevância a causa de sua emissão. 

Este tem sido o entendimento de nossa jurisprudência, inclusive do Superior Tribunal de Justiça, como se pode verificar:


“RECURSO ESPECIAL. DÍVIDA DE JOGO. PAGAMENTO. CHEQUES. AÇÃO DE LOCUPLETAMENTO. Dívidas de jogo ou de aposta constituem obrigações naturais. Embora sejam incabíveis, é lícito ao devedor pagá-las. Se o pagamento é realizado por meio de cheques sem provisão de fundos, admite-se o manejo de ação de locupletamento para cobrá-los, sem que esbarre na proibição da dívida de jogo.” (Resp 822922/ SP, Recurso Especial 2006/0039412-6 – Relator Ministro Humberto Gomes de Barros – Terceira Turma – Julgamento em 06 de março de 2008 – Publicação no DJE em 01 de agosto de 2008) (grifos nossos)


Se outrora nossos Tribunais apenas reconheciam o direito de terceiro de boa-fé, hoje é cediço que o beneficiário do cheque também pode executá-lo ou cobrá-lo em caso de insuficiência de fundos, sustação indevida, etc. Neste sentido:


“Pode ser exigido em juízo pelo beneficiário de cheque ou pelo terceiro de boa-fé a quem ele foi endossado, o pagamento de título entregue em solução de aposta”. (RT 518/202)


 A partir do momento em que houve o pagamento por intermédio do cheque, além de haver uma nova relação jurídica de débito e crédito, não se pode frustrar tal conduta (quitação) de modo ardiloso. A segunda parte do artigo 814 do diploma substancial civil deverá incidir.

Após a decisão do Superior Tribunal de Justiça de que os cheques dados em pagamento de dívida de jogo ou aposta podem ser cobrados no Judiciário, evitando-se o locupletamento ilícito e fazendo valer o efeito da irrepetição das dívidas naturais, encerrou-se a discussão de que o cheque emitido para pagamento de dívida de jogo seria nulo.


Este entendimento, ademais, encontra-se em perfeita consonância com os princípios do direito cambiário.


Atente-se que não se trata de uma forma obliqua de legalizar jogos ou apostas meramente tolerados (ou ilícitos), mas sim de respeitar toda a teoria aplicável aos títulos de crédito (que assegura a sua literalidade e autonomia) e o fato de que tais negócios (jogo e aposta) se caracterizam como contratos (embora imperfeitos) e, como tais, geram efeitos jurídicos (em especial e, principalmente, o da irrepetibilidade do pagamento).
A alegação de “impossibilidade jurídica do pedido” (de cobrança ou execução do título), hoje, não é mais viável, sendo descabida e ultrapassada.


GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito das Obrigações, 2002.

RODRIGUES, Sílvio. Direito civil: Dos contratos e das declarações unilaterais de vontade. 20 ed. São Paulo: Saraiva, 1991.

VENOSA, Sílvio de. Direito civil: contratos em espécie. 3 ed. São Paulo: Atlas, 2003.

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